Our Self: Um blogue desalinhado, desconforme, herético e heterodoxo. Em suma, fora do baralho e (im)pertinente.
Lema: A verdade é como o azeite, precisa de um pouco de vinagre.
Pensamento em curso: «Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.» (António Alçada Baptista, em carta a Marcelo Caetano)
The Second Coming: «The best lack all conviction, while the worst; Are full of passionate intensity» (W. B. Yeats)

17/04/2017

Crónica da anunciada avaria irreparável da geringonça (79)

Outras avarias da geringonça.

Não admira que a geringonça nos anuncie os amanhãs que cantam, porque ela está lá para os anunciar. Já o BdP, que aumentou as suas previsões para 2017 de 1,4% para 1,8% inspira um pouco menos de desconfiança.

Contudo, se segundo a geringonça e a legião de opinativos que a suporta está tudo a correr tão bem, como explicar que o chamado Indicador Compósito Avançado da OCDE, que visa antecipar os pontos de viragem nos ciclos económicos, está há seis meses consecutivos a decrescer?  Há várias razões, a começar porque o horizonte da geringonça é de curtíssimo prazo e cada semana que aguentar é uma vitória e o indicador da OCDE indicia uma viragem nos próximos 6 a 9 meses; a continuar porque a aposta da geringonça nas reversões das tímidas medidas do governo anterior está de facto a criar um clima de certa euforia, devidamente apimentado pelo presidente dos Afectos, clima que excita os Animal Spirits de Keynes, aumenta o consumo e episodicamente puxa pela economia. Só que, num país descapitalizado, pior, num país em que o investimento não tem sido sequer suficiente para manter o capital fixo, que não tem mercado interno com dimensão, nem um contexto político, social e económico atractivo para o investimento directo estrangeiro, tudo isto são explosões de anfetaminas que esgotam rapidamente o músculo económico fraco e flácido.

Em cima de tudo o referido sobre o investimento, acrescente-se a poupança das famílias que está pelas ruas da amargura, uma banca cheia de crédito malparado (segundo o Plano Nacional de Reformas, a banca tinha 33 mil milhões de crédito em risco em Setembro do ano passado, e segundo a Fitch mais 6 mil milhões só em 2016) e está na sua maioria descapitalizada, o crédito às empresas para investimento é uma miragem. Segundo o BdP, citado pelo jornal Eco, os depósitos estão a cair e o crédito às empresas está no seu nível mais baixo dos últimos 14 anos e nos últimos 12 meses terminados em Fevereiro caiu de 2,7 para 1,8 mil milhões. Crescimento sustentado nestas condições só mesmo nos contos para crianças com que a geringonça nos embala.

Já agora, recordemos que as imparidades resultantes do malparado não só saem no bolso dos contribuintes de recapitalização da Caixa, saem também por via do mecanismo dos impostos diferidos, visto que o IRC dos bancos irá ser deduzido nos próximos 15 anos desses créditos fiscais, e adivinhem quem irá pagar os impostos que compensarão essa queda da receita fiscal.

Se além disso ainda nos recordarmos que nos últimos 15 anos o PIB per capita a preços constantes aumentou cerca de 30% enquanto as despesas da segurança social mais do que duplicaram, passando de 10% do PIB para 22%, então o optimismo postiço cai pela base e a vaca vai mais depressa para o brejo, até porque o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), em que a dívida pública representa dois terços, decresceu no 1.º semestre de 2016, em vez de crescer para fazer face ao cada vez maior défice futuro da SS.

A confirmar o que se sabe de há muito - que o aumento do consumo privado numa pequena economia aberta como a portuguesa, sem investimento e sem aumento da capacidade produtiva acaba a desequilibrar outra vez as contas externas e só se aguenta com mais endividamento - nos dois primeiros meses do ano as exportações cresceram abaixo das importações (13,8% contra 15,4%).

Conselho das Finanças Públicas veio a semana passada anunciar que o défice do OE 2016 teria sido de 2,5% sem medidas extraordinárias, o que levou o governo a grande excitação porque isso, aparentemente, demonstraria que, ainda assim sem essas medidas, o défice seria inferior a 3%. Esqueceram-se que a maior parte do «milagre» veio da redução de 0,8% em relação ao PIB no investimento comparado com 2015 (ver este quadro que reproduzi no post anterior), redução levada a cabo por um governo que enchia a boca com a bondade do investimento público.

Em vez de investimento público, o governo pretende dar mais feno à vaca marsupial pública para alegrar a sua clientela eleitoral acolhendo nas suas tetas mais «precários» cujo número potencial todos os dias aumenta com um critério cada vez mais elástico à medida que o PS cede às exigências de comunistas e bloquistas.

Quanto à saga da Caixa (e a quase tudo o resto) aplica-se o princípio de Pimenta Machado aqui recordado pelo outro contribuinte: «O que hoje é verdade, amanhã é mentira». É assim que a recapitalização que não afectaria o défice está agora «em aberto». O que pode não querer dizer nada, porque desconfio que a táctica de Centeno é inversa da táctica de Teixeira dos Santos que começava por anunciar um défice que no fim do dia chegava a ficar 5 vezes mais alto. Se for assim, isso revela alguma inteligência de um em relação a outro, ou talvez mais exactamente revela que a habilidade do animal Costa é mais eficaz no engodo do que ferocidade do animal Sócrates. E, falando de Centeno, temos que registar a sua performance a chutar para canto os assuntos polémicos, como no caso do pedido de informação do valor actual líquido do empréstimo ao Fundo de Resolução que ele deixou cair oito vezes.

A confirmar que as coisas na geringonça já viram melhores dias, em Março foram feitos 61 pré-avisos de greves. A acrescentar à greve da função pública convocada para 26 de Maio (adivinhou! uma sexta-feira!) e à manif da Fenprof em 18 de Abril, os sindicatos dos médicos anunciaram uma greve nacional em 10 e 11 de Maio, o pessoal da Transtejo e da Soflusa em 26 e 27 de Abril (adivinhou outra vez! a seguir ao feriado de 25), etc., um grande etc. Os tambores começam a rufar, mas ainda não é a guerra - veja-se o PCP a evitar pedir a votação do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) no parlamento, apesar de dizer que está contra. Por isso não se entusiasme que a avaria não está ainda à vista e, por várias razões que agora não tem tenho de explicar, o mais provável é que só a realidade tornará a avaria irreparável.

Sem comentários: