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09/12/2016

CASE STUDY: Há assuntos demasiado complexos para um referendo?

Supondo que os referendos são legítimos, será legítimo referendar qualquer questão? É consensual que referendar certas questões não é compatível com o Estado de Direito. Exemplos: «Aprova o fim da cobrança de impostos?» ou «Concorda com a despenalização do homicídio?» (Tratando-se de fetos parece que a pergunta é legítima.)

Já em outras questões há dúvidas. Exemplos: «Concorda com a despenalização das drogas leves?» (e porque não das duras?) ou, o meu referendo favorito, «Aprova o texto da lei constitucional relativa às ‘Disposições para a superação do bicamaralismo partidário, a redução do número dos parlamentares, a contenção dos custos de funcionamento das instituições, a supressão da CNEL e a revisão do título V da parte II da Constituição’, aprovado pelo Parlamento e publicado na Gazzetta Ufficiale n.88 de 15 de Abril 2016?»

Há quem defenda, como Alexandre Homem Cristo, que não se devem referendar «assuntos demasiado complexos para os cidadãos comuns». Pela minha parte, inclinava-me para esse lado, apesar das dúvidas. Em busca de iluminação li com o maior interesse o artigo «Quando os macacos votam, os carneiros perdem o monopólio» de Luís Aguiar-Conraria no Observador.

Com uma elegante argumentação que Blaise Pascal não desdenharia, o artigo assume que mesmo sendo os eleitores médios apenas ligeiramente mais inteligentes do que os macacos, a teoria das probabilidades garante, com uma probabilidade crescente com o número de eleitores e quase tão alta como a probabilidade de amanhã o sol nascer uma vez mais, que um referendo proporcionaria «a resposta certa», se essa resposta certa existisse. Embora não explicitamente dito, a resposta seria certa qualquer que fosse a complexidade da pergunta.

Fiquei fascinado. Estava finalmente encontrada a «resposta certa» para os referendos, afinal tão simples. É claro que o senso comum me dizia coisas diferentes e a maldita realidade me mostrava múltiplos exemplos de que a «resposta certa» poderia estar errada.

Fiz uma sesta e dormi sobre o assunto. Apareceu-me em sonhos o presbítero Thomas Bayes. Acordei em sobressalto e fui reler o artigo. Lá estava pelo meio a premissa mais importante: «admitindo que o voto de cada cidadão é independente do dos demais».

Acontece que toda a praxis política assenta precisamente na premissa, vezes sem conta confirmada, que o voto de cada cidadão não é independente do dos demais. Aliás, a esquerda, ou pelo menos certa esquerda, tem uma prática para lidar com isso - o agitprop. Mais uma bela teoria arruinada pela maldita realidade.

1 comentário:

ngoncalves disse...

"um referendo proporcionaria «a resposta certa», se essa resposta certa existisse. Embora não explicitamente dito, a resposta seria certa qualquer que fosse a complexidade da pergunta."

Não era preciso o fantasma do reverendo Bayes, o problema está aqui logo na "resposta certa". Sendo certo que as escolhas em podem ser simples, as consequências não o são.

Veja-se o Brexit. Após escolherem sair, os ingleses vão também gerir as negociações com a UE através de referendo ? Dito de outra forma, serão as consequências do Brexit o que vai poder eventualmente classificar a resposta do referendo como certa ou errada. Mas como as negociações vão ser feitas pelos eleitos sem consultar os eleitores, é fácil perceber que o referendo do Brexit em si não foi a resposta a coisa nenhuma. Excepto talvez a pergunta de quão estúpido é o David Cameron. Bastante !

A democracia não é apenas o voto individual e livre, é uma praxis de respeito pela tradição e pela comunidade.