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16/10/2009

ÉTUDE DE CAS: l’exception française – la France suicidaire (1)

Nas últimas semanas a comunicação social portuguesa tem feito eco da alegadamente anormal vaga de suicídios na France Télécom (FT) que atingiu ontem a quota de 24 suicidas nos últimos 20 meses (ver por exemplo o Monde).

Segundo os sindicatos franceses, citados pelo Monde, a vaga de suicídios dever-se-ia «aux conditions managériales, aux objectifs et à l'individualisation», segundo uns, à «stratégie du groupe, les nombreuses mutations que subissent ses cadres et la réduction des effectifs», segundo outros, ou, segundo os mais assanhados, ao «management par la terreur». Segundo a imprensa portuguesa, a génese do fenómeno seria aproximadamente a mesma (o que não admira porque os jornalistas portugueses partilham habitualmente as análises dos seus homólogos franceses ou ecoam as dos spin doctors portugueses). Os culpados são a «gestão do pessoal baseada no terror, na humilhação e no silêncio» (DN), ou a «forte pressão sobre os funcionários e a desumanização das condições de trabalho» (Expresso), ou o «controlo apertado de que são alvo, nomeadamente nos períodos de pausa, as pressões para aumentar a produtividade e a desumanização das relações na empresa» (JN).

Independentemente das causas, a primeira questão que se deve colocar é: o que representam em termos relativos, no quadro da sociedade francesa, 24 suicídios verificados na FT nos últimos 20 meses? Façam-se alguns exercícios de aritmética elementar:
  • Taxa anual de suicídio da FT a nível mundial = 12 meses x (24 suicídios : 20 meses) : 187.000 empregados = 7,7 por 100.000
Assumindo que na FT só os trabalhadores franceses se suicidam:
  • Taxa anual de suicídio da FT em França = 12 meses x (24 suicídios : 20 meses) : 100.000 empregados = 14,4 por 100.000
Assumindo que só os trabalhadores franceses do sexo masculino se suicidam (nenhuma mulher se suicidou) e que os homens representam 2/3 do total de empregados franceses da FT:
  • Taxa anual de suicídios da FT em França = 12 meses x (24 suicídios : 20 meses) : 2/3 de 100.000 empregados = 21,8 por 100.000
Segundo os dados do ministério do Trabalho francês (ver quadro abaixo), a taxa de suicídio para os dois sexos em 2006 no conjunto dos escalões 25-64 anos deveria rondar os 20 por 100.000.


Se os suicídios na FT estivessem em linha com a média nacional deveriam ter-se suicidado nos últimos 20 meses:
  • 20 x 20 : 12 = 33 empregados franceses, número 37,5% superior ao dos suicídios ocorridos.
Considerando apenas o sexo masculino e continuando a assumir que 2/3 dos empregados da FT são homens, estimando a taxa de suicídio nacional masculina no conjunto dos escalões 25-64 anos em 30 por 100.000 os suicídios de homens na FT nos últimos 20 meses deveriam ter sido:
  • 20 x 30 x 2/3 : 12 = 33 empregados homens franceses, número por coincidência igual ao anterior.
Comparemos agora as taxas de suicídio francesas com os de países europeus. Com base nos dados da OMS de 2005 (citados aqui) constata-se que, aparte os países ex-soviéticos, que têm taxas de suicídio elevadíssimas (será o síndrome de perda do paraíso socialista?), a França tem das taxas mais altas: 35% mais alta do que a Alemanha, quase 60% mais alta do que Portugal e 2,5 vezes a do Reino Unido.

Primeiras conclusões (esquecendo o facto singular de nenhuma mulher se ter suicidado, que eu saiba):
  1. A taxa de suicídio da FT é baixa pelos padrões franceses ou, dito de outra maneira, o clima dentro da FT, se for deprimente, não é tão deprimente quanto a maioria das empresas francesas
  2. A taxa de suicídio da FT não é baixa pelos padrões internacionais, porque estamos a compará-la com a da França que é uma sociedade com uma taxa de suicídios comparativamente elevada, mas, nesse caso, o problema é um problema francês e não especialmente da FT.
(Continua num próximo post especulativo sobre a génese das tendências suicidárias dos franceses)

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