Não fiquei surpreendido pela reacção da comentadoria do regime e do jornalismo de causas à última intervenção pública de Pedro Passos Coelho (PPC). Afinal, cada vez que ele ou Aníbal Cavaco Silva escrevem ou dizem seja o que for, sobre seja o que for, segue-se o mesmo ulular indignado e raivoso. A explicação talvez seja mais do domínio do psicopatológico do que do político.
Quando percebi que, desta vez, o móbil da indignação era o pensamento de PPC sobre a família, fiquei curioso e fui ler a intervenção que a motivou. Encontrei um texto equilibrado, inspirado numa visão tolerante, com ideias relativamente redondas e, por isso, consensual para uma grande maioria das pessoas que não vivem dentro da bolha mediática largamente esquerdista e estreitamente geográfica. Premonitoriamente PPC antecipa as reacções habituais: «há rótulos que são colocados com uma intenção clara de desqualificar aqueles que lançam as discussões, de os diminuir e de os condicionar».
O que teria incendiado a esquerdalhada para além da conhecida reacção pavloviana? Haverá sem dúvida outras questões («questões da segurança e da imigração», «os símbolos da República», «a sovietização do ensino», «ajudar as pessoas a morrer») que não terão deixado de irritar a bolha, mas suspeito que a passagem seguinte lhes tocou no nervo.
«Que nós sabemos que não há um único conceito de família e, historicamente falando, a família não teve sempre a mesma configuração ao longo do tempo. Essa configuração foi evoluindo com a sociedade. Mas se a família, de certa maneira, representa o primeiro espaço de socialização, julgo que hoje haverá um amplo consenso em torno desta minha afirmação, julgo.
A família é primeiro espaço de socialização. E, nessa medida, portanto, de transmissão de valores, de exemplos, que numa geração para outra geração vai dando continuidade a um destino coletivo. Nessa medida, portanto, podemos dizer que a família antecede o Estado, evidentemente, e dificilmente se pode entender de uma forma separada da sociedade em si mesma.
(...) uma instituição que, de resto, é insubstituível. Não há ninguém, nenhuma outra instituição, que possa substituir a família. Os substitutos são imperfeitos.»
E porquê? Porque, pelo menos desde "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado" de Engels, que a escreveu como uma espécie de ghostwriter de Marx, que o marxismo clássico vê a família monogâmica heterossexual, uma instituição de origem espontânea, como um instrumento de perpetuação da propriedade privada e um obstáculo ao primado do Estado Comunista que nos conduzirá ao paraíso da sociedade sem classes. É claro que, com a falência e o descrédito do marxismo clássico, o neo-marxismo teve de reinventar essas ideias, reformular o vocabulário e a sintaxe mas o propósito de destruir o Estado Capitalista permanece o mesmo e para tal é um passo indispensável "desconstruir" a família monogâmica heterossexual e banir o "heteropatriarcado".
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