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13/12/2004

CASE STUDY: Despedido pelas razões erradas? O epílogo ou talvez não.

No primeiro capítulo falei do quid pro quo escondido na estranha convergência de opiniões. No segundo capítulo nomeei e comentei algumas das barracadas e tiros nos pés do doutor Lopes e dos seus ministros.

Neste terceiro e último (ou talvez não) capítulo, procuro compreender as razões dessa estranha e ruidosa convergência. Recordo, à cautela, que o Impertinências sempre teve em pouca conta o doutor Lopes, como de resto a maioria dos primeiros-ministros que desfilarem pelo ror de governos que nasceram e morreram desde que percebi que tais coisas existiam. Nesta fase da minha vida, o desfile já conta com mais de duas dezenas de protagonistas, incluindo o doutor Salazar e o professor Marcelo (não ESSE, mas o padrinho dele). Em matéria de PRs, apesar de mais económicos (só me lembro de 8 desde o venerando marechal Carmona até ao sereno doutor Sampaio), os portugueses não ficaram melhor servidos. É neste altura que se costuma dizer que os portugueses (ou os espanhóis, ou os croatas, etc.) têm os governos que merecem e, no caso dos portugueses, é também costume citar aquele general romano que escreveu ao imperador a avisá-lo que os locais não se governavam nem se deixavam governar - uma das poucas tradições que ainda é o que era.

Voltando à vaca fria, porquê uma imensa maioria de luminárias de diversas espécies e de cidadãos estão de acordo com o PR que, no meio de apelos à calma, à tolerância e à serenidade e de juras de coerência, considera que os «sucessivos incidentes e declarações, contradições e descoordenações que contribuíram para o desprestígio do Governo, dos seus membros e da instituições» criam uma «insustentável situação»?

Dou de barato que é visível que esses sucessivos incidentes e etc. foram igualmente sucessivos, e quase sempre mais graves e de maiores consequências, durante o consolado do engenheiro Guterres. De barato, dou eu e mais umas poucas almas - e aqui é que está o busílis. Imensas outras almas ainda hoje estão para perceber o que extinguiu tamanha felicidade. Desde os Estados Gerais o engenheiro Guterres dispôs duma enorme expectativa positiva. Pela imagem e pela palavra, o homem induziu nas mentes a chegada da abundância, o desapertar do cinto e a saída para o recreio no fim duma aula longa e chata do gajo que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava. À pala desta expectativa, os portugueses viveram com grande alegria até ao fim da festa de fim de ano lectivo com passagens administrativas que foi a Expo 98. Depois disso, a porca começou a torcer o rabo. Mas o homem, pela sua verve e pela sua compostura, conseguia manter os fazedores de opinião felizes e embevecidos com a brilhante inteligência do senhor engenheiro que parecia estar sempre de acordo com a treta deles, fazendo-os sentir-se igualmente brilhantes. Como felizes ficavam os empresários (com excepção do engenheiro Belmiro que não papava daquelas tretas) com a grande visão do senhor engenheiro que, inevitavelmente, também concordava com eles. A felicidade geral acabou no pântano e, como se sabe, a fuga do senhor engenheiro deixou-nos órfãos deprimidos e sem auto-estima.

Não me dou ao trabalho de relembrar os sucessivos incidentes que também assombraram a governação do doutor José Barroso - outro fugitivo.

O que tinha de diferente o doutor Lopes que esteve 3 semanas para ser nomeado, torrando no lume brando do doutor Sampaio, que falou com metade de Portugal para o nomear e, supõe-se, apenas com a doutora Maria José para o dissolver? Falta de estatuto e compostura. Meio caminho andado, neste país, para a falta de credibilidade que o minou desde o primeiro dia - com excepção dos seus fiéis e dumas centenas de crentes por desespero, ninguém apostava um cêntimo no homem. E antipatia - com excepção da mãe, das namoradas, passadas, presentes e futuras, o homem suscita más vibrações a imensa gente. Por diferentes razões.

Vejamos sumariamente as possíveis razões dos diversos segmentos do mercado político.

Primeiro os consumidores:

O povo e os políticos de esquerda não gostam do doutor Lopes porque imaginam que ele é populista e neo-liberal (onde é que já se ouviu maior besteira?). Digamos que é um ódio visceral, que por isso não carece de explicação. Por boas ou más razões, o doutor Lopes perde aqui, sem apelo nem agravo, 45% do eleitorado.

A terceira idade não respeita o doutor Lopes, e sabe-se como para a terceira idade o respeitinho é muito bonito. Quer tenham sido admiradores do doutor Salazar, do general Spínola, do doutor Cunhal, do doutor Soares, do general Eanes, é preciso reconhecer que a compostura e o sentido das conveniências é coisa que, abundando naqueles, falta definitivamente ao doutor Lopes. Isso retira-lhe mais uns 10% do eleitorado (já descontado o povo de esquerda).

A tribo LBGT, em particular a letra «G», suspeita da atracção que o doutor Lopes é acusado de despertar entre o mulherio. Nem a proximidade política a putativos praticantes dessas modalidades, limpa o seu cadastro. Calculo que o doutor Lopes perde aqui a confiança de mais 2% ou 3% do eleitorado (já descontada a tribo de esquerda)..

Os empresários, que não pesam como eleitores, mas sopram nas orelhas do doutor Sampaio, também não apreciam o estilo fogoso do doutor Lopes, ainda para mais quando o governo toma umas tímidas medidas, como a limitação do sigilo bancário e a redução dos benefícios fiscais da banca.

Não vou perder mais tempo com os consumidores, porque só até aqui já temos garantidos os 55 por cento dos inquiridos que na sondagem da Universidade Católica consideraram a actuação do governo "má" ou "muito má".

Depois os canais de distribuição do produto:

Mais do que as confusões entre piano e violino, o que os artistas dos palcos, dos écrans e da escrita nunca perdoarão ao doutor Lopes, a quem também eles não reconhecem estatuto, foi ter estado sentado em cima da caixa das esmolas durante a sua estadia na secretaria de estado da cultura do governo do doutor Cavaco. Recorde-se, já agora, que ao doutor Cavaco essas almas também não reconheciam estatuto (este confundiu os Thomas, o Mann e o More), mas toleraram-no durante algum tempo porque lhes parecia o único capaz de evitar a quebra da caixa das esmolas. Vem a propósito citar o doutor Eduardo Prado Coelho cujo espírito pragmático o fez incensar o doutor Cavaco, antes de se dedicar, com o mesmo zelo, ao engenheiro Guterres.

Os ódios de estimação do resto da intelligentzia mergulham as suas raízes na mesma terra dos artistas - falta de estatuto. O homem não tem Cóltura (com maiúscula). Aqui, como em quase todos os países atravessados pela tropa de Napoleão, quem não tem Cóltura (com maiúscula) não merece estar lá. En passant, isso explica parte do ódio endémico a George Bush.

Dos jornalistas, aparte casos do foro clínico, como o doutor Delgado, a classe não gosta do homem, nem bem, nem mal passado. Desde logo porque uns 80% (a lei de Paretto também se deve aplicar aqui) se inscreve numa das modalidades da esquerdalhada. Muitos dos restantes consideram-se intelectuais e, mutatis mutandis, também não reconhecem estatuto ao doutor Lopes, que entre outros vícios tem o mau costume de tentar falar ao povo por cima deles. A estória da criação da central de comunicação, medida estúpida em si mesma, invocou os demónios da classe jornalística e matou os últimos vestígios de respeitinho pelo homem.

Mesmo entre o pessoal político da sua coutada, o doutor Lopes concita os ódios de quase todo o baronato pêessedeista, que está em operações de reagrupamento das tropas fiéis e aliciamento de novos recrutas, esperando prudentemente um trauliteiro que os conduza ao assalto final ao púlpito do doutor Lopes.

É por estas, e por outras, que o doutor Lopes ainda antes botar a assinatura no enésimo volume dos livrinhos de tomada de posse estava já irremediavelmente condenado a um triste fim, fizesse o que fizesse. E assim se explica uma exoneração singular na história da 3ª república. Singular porque se trata dum governo cujo passivo não era assim tão grande como o pintaram e cujo activo não era tão insignificante como o quizeram fazer. Singular ainda pelo processo de cernelha adoptado pelo PR que, ao invés de exonerar o governo, dissolve a AR. Depois do processo ínvio seguido pelo PR que decide primeiro, consulta depois e faz este discurso, o que ainda se percebe melhor é a demissão do governo, manifestando pouca disposição para ficar a fazer de sitting duck da oposição.

Continua?

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