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01/12/2018

DIÁRIO DE BORDO: Senhor, concedei-nos a graça de não termos outros cinco anos de TV Marcelo (67) - Dando ao trivial as honras de assuntos de Estado e aos assuntos de Estado a importância das trivialidades

Outras preces

É raro o dia em que não tenha razões para me felicitar por não ter votado no candidato Marcelo Rebelo de Sousa (engoliria o sapo na segunda volta, como os comunistas a quem Cunhal mandou votar em Soares). Esta semana não foi excepção. Dos vários episódios, vou citar apenas dois. 

O primeiro é típico da verborreia marcelista e da sua imanente incapacidade de ter uma «pose de Estado», para usar uma expressão ridícula, e de conter a sua obsessão de se mostra conhecedor e influente. Qual o propósito de comentar uma suposta «gravação mas que lhe tinham dito que era violenta e horrorosa», que circula «a nível de Estados» e «ninguém em Portugal teve acesso ao vídeo ou o viu» sobre o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, gravação de que lhe falou «um político importante»? Depois de quase dois anos ainda não percebeu a diferença entre ser comentador topa-a-tudo e fazer de presidente da República?

O segundo episódio ilustra a dificuldade de Marcelo distinguir a relevância das coisas dando ao trivial as honras de assuntos de Estado e aos assuntos de Estado a importância das trivialidades. Foi isso que fez a propósito da incapacidade de uma parte dos mídia responderem aos novos desafios da emergência do digital e das redes sociais, incapacidade a que chamam crise da comunicação social, com a mesma lógica com que os carroceiros do início do século passado chamariam crise dos transportes à emergência do automóvel.

Sua Excelência a esse propósito declarou que existe uma «situação de emergência da comunicação social em Portugal (que) de, ano para ano, vai sendo cada vez mais grave (e está) a criar problemas já democráticos, problemas de regime», interrogando-se «até que ponto o Estado não tem a obrigação de intervir?» Só faltou recomendar ao governo socialista de Costa que pagasse com o dinheiro dos contribuintes os jornais que estes não compram. Sugestão que Costa aceitaria de bom grado e teria a virtualidade de converter a totalidade dos mídia, e não apenas uma parte importante, em caixa de ressonância do governo.

Há uma diferença entre o transporte por carroças e o jornalismo? Na verdade as carroças não são indispensáveis à democracia mas a democracia não vive sem jornalismo livre e independente. É também por isso que a nossa é uma democracia asmática porque o jornalismo que temos dificilmente se pode classificar como livre e independente e padece frequentemente dos mesmos males que os jornalistas de causas apontam às redes sociais.

1 comentário:

Ricardo disse...

Nos “media” tradicionais sobram somente a cegueira, que os impede de perceber as causas da sua agonia, e a obediência, que os leva a apoiar os esforços para aplicar rédea curta à devassidão da "net".

O prof. Marcelo pergunta-se se o Estado não deve intervir nos “media”. E suspeito que sabe a resposta: na perspectiva dele, é sim, claro que sim, mil vezes sim. Na perspectiva dos “media” tradicionais, também. Ainda o prof. Marcelo se aliviava daquelas profundíssimas questões, o “Público” corria a entrevistar uma “investigadora na área dos ‘media’”, assaz identificada com a angústia presidencial: “Marcelo apontou-nos uma bandeira, agora é preciso agitá-la de forma musculada”. Em simultâneo, um administrador da Global Media, que possui o JN, a TSF e o fantasma do DN, declarou a proposta “corajosa” (?) e merecedora de “reflexão” a cargo dos “partidos, dos operadores e da sociedade civil”. Um responsável da Renascença afirmou ser “importante alertar para a importância dos meios de comunicação social”. E, há cerca de um ano, o “publisher” (ena) da Cofina exigia um “plano de emergência” para o sector. O sector em peso desatou a agitar a tal bandeira de forma musculada, para não dizer desesperada.

À semelhança do prof. Marcelo, tenho dúvidas. Ei-las: descontado o oficial entulho salazarista da RTP e da RDP, o Estado não intervém nos “media”? De certeza? Significa isto que os “media” são o que são por livre vontade? E que a omnipresença de palavreado senil “sobre” bola não visa consolar os simples e distraí-los de um país em marcha firme rumo ao abismo, com ou sem pedreiras? E que os Louçãs, os Mendes, os Pachecos, os Césares, os Proenças, as Mortáguas, os Júdices e restantes paradigmas das nossas finas castas ocupam 97% do espaço “opinativo” apenas por obra e graça do seu brilho analítico, da originalidade do raciocínio, da excelência do verbo? E que a “cobertura” da aberração política que nos assombra desde 2015 é fruto de decisões editoriais conscientes e não um exercício de propaganda tão infantil que envergonharia Goebbels e Zhdanov?



Onde estão as audiências? A maioria, que assiste a noticiários protagonizados por dirigentes desportivos, está em transe e, não tarda, em fóssil. O resto saltita por aí, à cata de informação não sujeita a censura prévia ou póstuma. Com maior ou menor rigor, e às vezes rigor nenhum, descobrem-na na internet. Peneirada uma imensa quantidade de entulho, aqui e ali, nas “redes sociais”, páginas pessoais ou “sites” de facto jornalísticos e independentes, acabam por sobrar algumas interpretações menos alucinadas da realidade. Nos “media” tradicionais, sobram unicamente a cegueira, que os impede de perceber as causas da sua agonia, e a obediência, que os leva a apoiar os esforços das castas nacionais e internacionais para, em nome da “liberdade” e da “democracia”, aplicar rédea curta à devassidão imprevisível que prospera na “net” (entre múltiplos avisos, a recente obsessão com a “direita do Observador” não engana). Além de não terem muito público, os “media” não têm muita vergonha.

E o mesmo se aplica a quem defende a sobrevivência dos “media” para defender a própria, ambas vinculadas ao caldo de compadrios a que se convencionou chamar regime. Não é a atitude “corajosa” de que alguém falou acima: é, por definição, o contrário. Em tempos, a ideia era ajudar o outro a terminar o mandato com dignidade. E os mandatos que já começam indignos? (do artigo os diários da República no Observador)