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06/10/2023

Os equívocos do Programa "Mais Habitação", ou como tentar administrar uma medicação sem saber qual é a doença (8) - Os problemas da habitação são iguais em todo o lado mas há uns mais iguais do que outros (II)

Continuação de (1), (2), (3), (4), (5), (6) e (7)

As situações particulares dos países são diferentes, ou mesmo muito diferentes, e por isso meter todos no mesmo saco da "crise da habitação" leva a soluções que não resolvem coisa nenhuma.

Ontem o Financial Times (FT) publicou o artigo Where are European mortgage holders most exposed to higher rates? comparando vários parâmetros de cinco países da Zona Euro (Alemanha, Espanha, França, Itália e Países Baixos) com os do Reino Unido. Apesar das mesmas taxas Euribor, as taxas médias das hipotecas na Zona Euro variam entre 1,55% em França e 3,44% em Espanha (Reino Unido 3,06%).

Os sistemas de taxas situam-se entre dois extremos, por um lado países com uma maioria de hipotecas a taxa fixa por uma ou mais décadas (Alemanha e França), que por isso têm taxas médias mais baixas, e por outro países em que predominam taxas variáveis (Países Baixos) e no meio a Espanha, com cerca de metade das hipotecas a taxas fixas e uma taxa média de juro mais elevada.

Em Portugal as taxas variáveis representam 92,6% da carteira de hipotecas embora com tendência para diminuir em benefício das taxas fixas, que em 2022 representaram 6,9% das novas hipotecas, e das taxas mistas (com um período inicial a taxa fixa seguido de taxa variável), que no mesmo ano representaram 12,3% das novas hipotecas.

A taxa média TAEG (que inclui outros encargos além dos juros) no ano passado aumentou de 2,7% para 3,7% e em Março deste ano registou um aumento homólogo de 3 pp, atingindo 5,4%, 1,7 pp acima da média da Zona Euro. Estas taxas médias não são comparáveis com as referidas pelo FT, mas podemos compará-las com a média das Taxas Acordadas Anualizadas que nas novas hipotecas em Portugal em Março atingiu 3,6%, 0,3 pp acima da média da Zona Euro e mais 2,8 pp face à registada no final de 2021.

O índice de preços da habitação do INE passou de 100 em 2015 para 204,74 no 2.º trimestre de 2023. O aumento de cerca de 105 pp corresponde a um aumento anual médio de 9%, muito acima da inflação média nesse período.

Housing price statistics - house price index (Eurostat)

Como se vê no gráfico acima, em termos comparativos com os países da UE o aumento dos preços das habitações em Portugal desde 2010 foi o oitavo mais elevado e muito acima das médias da UE e da Zona Euro.

Em conclusão, as taxas dos créditos à habitação em Portugal estão em forte crescimento e são mais altas do que a média europeia, em parte devido à opção predominante por taxas variáveis, o que permitiu beneficiar das taxas de referência do BCE baixas e das injecções de dinheiro do alívio quantitativo nos anos 2012 até 2021, mas teve como consequência um aumento mais acentuado desde 2022. O crédito barato e abundante nesses anos potenciou uma procura interna cada vez menos satisfeita com uma oferta de novas habitações em queda (ver o segundo post desta série) o que explica o fortíssimo aumento dos preços da habitação, com o contributo no que respeita às habitações topo de gama da procura externa resultante, entre outros factores, dos incentivos proporcionados pelos chamados vistos Gold.

[Fontes, além das citadas, para os dados portugueses: INE (Índice de preços da habitação - 2º trimestre de 2023) e Banco de Portugal (Relatório de acompanhamento dos mercados de crédito, 2022 e Relatório de estabilidade financeira, Maio de 2023)]

2 comentários:

Afonso de Portugal disse...

Congratulo o Sr. (Im)Pertinte por esta postagem, que finalmente procura lançar – com dados e números concretos – alguma luz sobre o que realmente se está a passar em Portugal.

Passando directamente à principal conclusão deste texto:

«O crédito barato e abundante nesses anos potenciou uma procura interna cada vez menos satisfeita com uma oferta de novas habitações em queda (…) o que explica o fortíssimo aumento dos preços da habitação, com o contributo no que respeita às habitações topo de gama da procura externa resultante, entre outros factores, dos incentivos proporcionados pelos chamados vistos Gold.»

O crédito barato e a redução da oferta apenas explicam parcialmente o que está a acontecer, não totalmente. Quando olhamos para a evolução dos montantes concedidos a particulares em empréstimos à habitação até 2022, verificamos que ainda estamos abaixo dos valores registados entre 2004 e 2007.

Ou seja, havia mais pessoas a endividar-se para comprar casa em qualquer ano do período entre 2004 e 2007 do que em 2022, pelo que a explicação da diminuição das taxas de juro entre 2012 e 2021 não me convence minimamente.
Mais ainda, a partir de 2017, houve uma subida muito considerável dos contratos de arrendamento , o que sugere que muitos portugueses(?) optaram por alugar em vez de comprar.

Aqui, o Sr.(Im)Pertinente poderá contrapor que, para além do aumento dos empréstimos, temos também o facto de que a oferta de novas habitações tem sido muito mais reduzida do que era na primeira década deste século. Neste capítulo, já tenho que lhe dar razão. Houve, de facto, uma fortíssima redução do número de novos edifícios construídos entre 2011 e 2021, comparativamente aos períodos 2001-2010 e 1991-2000.

Afonso de Portugal disse...

No entanto, eu gostaria de olhar também para o lado da procura, em particular para o perfil de quem procura adquirir novas habitações, tanto no caso dos compradores particulares, como dos compradores institucionais. É esse o dado crucial que falta nesta análise, a caracterização da procura, e que seria necessário analisar para dar ou não razão ao Sr.(Im)Pertinente.

Infelizmente, eu não consigo encontrar dados decentes sobre a procurar de habitação em Portugal.

Este artigo de 2019 diz-nos que «A maioria das pessoas (85%) que andam “às compras” (de casas) em Portugal são portugueses – 15% são estrangeiros, sobretudo franceses – e há mais mulheres que homens a “investir” no imobiliário residencial: 55% contra 45% de homens.»

Já este artigo de 2023 diz-nos que «(…) os estrangeiros estiveram mais activos no mercado residencial nacional durante o ano passado [2022], começando a ganhar terreno em termos relativos aos portugueses. Enquanto o número de transacções levadas a cabo por portugueses apenas subiu 0,3% em 2022 face ao ano anterior, as protagonizadas por estrangeiros cresceram 20,2% entre estes dois momentos, totalizando 10.722 habitações - representando 11,4%, do total das vendas, o valor mais elevado desde que há registos do INE. Também o valor das vendas de casas levadas a cabo por estrangeiros subiu 25% em apenas um ano, para 3,6 mil milhões de euros.»

Repare-se, no final de 2022, havia 800 mil estrangeiros em Portugal, cerca de 7,6% da população residente. Mas esses estrangeiros representaram 11,4% das comprar de casa em 2022 e 15% das compras de casa em 2019.

Não estou, de forma alguma, a querer dizer que a crise da habitação se deve única e exclusivamente à presença crescente de compradores estrangeiros em Portugal. Mas surpreende-me imenso que estes dados – que são significativos no contexto do problema – nunca entrem nas análises levadas a cabo pelos liberais. Dá até a impressão que têm medo de falar disto!...