Estado Novo / Novo Estado vistos por João Abel Manta |
A semana passada o jornal Nascer do Sol citou um artigo com o título "Indiferença" de Francisco Sá Carneiro escrito a 3 de janeiro de 1978 para o Povo Livre mas nunca publicado. O texto tem uma actualidade à primeira vista surpreendente, mas na verdade expectável porque parafraseando o Grande Zarolho apesar de se terem mudado os tempos, permaneceram as vontades. Desse artigo extraio algumas passagens.
«1. Nesta crise que se vai instalando tem sido gabada a serenidade e maturidade dos portugueses, a calma e o civismo com que aguardam o seu desfecho.
Ora a verdade é que a serenidade, o civismo e a calma são meras aparências que os políticos e alguma imprensa gostam de invocar como sinais e ornamentos da ‘jovem democracia portuguesa’.
O que na realidade há, perante a crise e tudo quanto a ela tem dado lugar, é uma enorme e profunda indiferença.
Indiferença que radica em crescente descrença e se liga ao conformismo tradicional dos portugueses.
Quanto mais os políticos e os responsáveis falam, menos as pessoas neles acreditam. E têm razão. Há anos que ouvimos as mesmas pessoas dizerem de modo mais ou menos solene e pomposo as mesmas coisas, sem que nada se modifique. Há quem, a intervalos. enumere as questões e faça afirmações perentórias de mudança. As coisas vão piorando, mas os discursos vão-se sucedendo, enquanto leis essenciais não são postas em vigor e outras não se aplicam; nada de fundamental se modifica.
Em Portugal os cidadãos não estão, sob muitos aspetos, a ser tratados como pessoas. Há um desprezo enorme, que avulta em comportamentos e em discursos, pelos direitos do homem e pelo respeito que é devido aos seres humanos. Não surpreende, por isso, que em face dessa degradação muitos portugueses esqueçam por sua vez a sua dignidade pessoal.
Enquanto os portugueses forem, ou continuarem a ser manipulados e instrumentalizados, não se pode exigir que cada um tenha de responder pelo futuro da Pátria, como quer a mensagem presidencial.
Para exercer a responsabilidade individual é indispensável que se apurem e exijam responsabilidades pelo estado a que Portugal chegou, pela degradação moral e material que se agrava sob o olhar impassível dos mais grados responsáveis.
É depois necessário que se dê a cada um oportunidades. E elas não existem quando o Estado tudo quer controlar e dominar, quando por toda a parte se instala a burocracia parasitária, impeditiva, sufocante, deformadora.
(...)
Não é com lugares comuns idiotas, como o do otimismo dos homens de esquerda, nem com constantes diálogos de surdos, nem com meros acordos de partilha de poder, nem com a sacralização da Constituição ou do Presidente da República que Portugal sairá do fundo do abismo.
Há quem queira manter todo este estado de coisas no qual muita gente, constituída em minoria privilegiada, singra, prospera e faz fortuna. São esses, muitas vezes, os que mais defendem as ‘conquistas da revolução’, que mais esbracejam, que mais esquerdizam. Pudera, eles têm muito a perder. Mas a triste verdade é que parecem ser esses mesmos os que mais influência têm, a ponto de controlarem os jogos do poder.
Nós temos, em Portugal, uma semidemocracia, tutelada pelo Conselho da Revolução, um semi-socialismo amparado na Constituição, um semipresidencialismo, hesitando perante os caminhos de ação, e agora um Governo semiderrubado em vias de recomposição.
(...)
4. O país dos portugueses não parece ser o mesmo da maior parte dos políticos, nem a terra destes a nossa terra.
Isso deve-se em parte a um comportamento que a presente crise agudizou e que pode designar-se por ‘integral-situacionismo’.
A base dessa linha de ação é a manutenção da atual situação. A situação deve manter-se a todo o preço – evitando-se até novas eleições – mesmo que seja necessário alargar, política e numericamente, o círculo e grupo que dela beneficiam. Os situacionistas caracterizam-se pela tendência para o exclusivismo, procurando aumentar influência e proveitos só para os componentes do seu grupo. Mas quando a situação está em perigo, lançam mão dos grandes meios e abrem um pouco a coutada, aumentando por outro lado a intransigência contra os não situacionistas. As medidas de salvação da situação implicam pois partilha de benefícios, por um lado, e intransigência total contra os não colaborantes, por outro.
Pode haver, tem havido e continuará a haver, quem rejeite o situacionismo, defendendo medidas democráticas de salvação nacional em lugar de expedientes de salvação da situação.
Estes discordantes, estes oposicionistas, são uns perturbadores do jogo situacionista e como tal. nas alturas de crise sobretudo, quando a situação periga, têm de ser atacados, neutralizados, silenciados. É então que o integral-situacionismo se revela em toda a sua dimensão: quem não colabora com os situacionistas é reacionário; quem ataca a situação merece sanções severas de leis especiais que o integral-situacionismo está a preparar. Por aí fora é um rosário de fervor situacionista em ebulição, cuja espuma corrosiva não poupa nenhum obstáculo surgido ao exercício do poder.»
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