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05/02/2021

QUEM SÓ TEM UM MARTELO VÊ TODOS OS PROBLEMAS COMO PREGOS: O alívio quantitativo aliviará? (69) Unintended consequences (XXIII)

Outras marteladas.

Em retrospectiva:

Têm-se multiplicado as advertências sobre os efeitos das políticas não convencionais dos bancos centrais poderem desencadear a próxima crise financeira, algo para o qual temos vindo à chamar a atenção há vários anos, pelo menos desde este post de 2012 (duas semanas antes do «whatever it takes» de Draghi).

Se há conjunturas em que faz sentido injectar dinheiro na economia durante um período limitado é durante uma crise de pandemia que afecta simultaneamente a oferta e a procura. O problema é que a bazuca incrementada, que parece estar prestes a chegar inundando vários países com dinheiro fabricado do nada, cai em cima de 12 anos de quantitative easing e, no caso de Portugal, em cima de uma dívida pantagruélica (a 4.ª maior da OCDE) e em crescimento acelerado que pode nos próximos anos chegar a 150% do PIB.

Aparentemente não há muita gente que aponte os efeitos colaterais destas políticas dos bancos centrais, políticas que não têm em conta o comportamento totalmente diferente dos preços dos bens e dos activos. No post anterior citei Rana Foroohar, colunista e editora associada do Financial Times, sobre esses efeitos nos mercados imobiliários. Cito agora Ricardo Arroja sobre os efeitos nas bolsas de valores que escreve a propósito do episódio da especulação sobre a Gamestop (A música do mercado, jornal Eco).

«Teoria e divagações à parte, o que interessa verdadeiramente no legado de Greenspan e dos seus sucessores (Bernanke, Yellen e agora também de Powell) é que os bancos centrais são cada vez mais os principais especuladores nos mercados de capitais. Não é só na América e na Europa que isto acontece. No Japão, que destacadamente segue várias décadas à frente dos demais em matéria de políticas monetárias não convencionais, o banco central vai ao ponto de comprar acções directamente no mercado, sendo hoje o principal detentor de acções japonesas. Trata-se de uma forte distorção do factor risco, que conduz à irrelevância da noção de valor accionista, e de uma subversão do princípio segundo o qual o mercado constitui um livre e espontâneo processo de descoberta de preços.

Há alguns anos alguém disse que tínhamos chegado a um momento civilizacional em que deixaríamos de ter recessões. O ciclo económico seria permanentemente alisado através da intervenção governamental. A tese, como é sabido, não vingou e desde então já tivemos várias recessões porque a intervenção governamental, para além de andar sempre atrasada face ao ciclo económico, é ela própria geradora de ineficiências que frequentemente prejudicam o ciclo económico. Ora, neste momento passa-se algo do género com os bancos centrais, e com a utilização da política monetária para fins intervencionistas. Alguém parece ter estipulado que deixaram de existir “bear markets” e que a impressão monetária é solução para todos os males.

Os indicadores apontam todos no mesmo sentido. Avaliações de mercado estratosféricas, uma capitalização bolsista que excede em muito o PIB, níveis de endividamento inéditos, e agora estratégias especulativas a partir de redes sociais. A bolsa norte-americana, que comanda as restantes, está eufórica. Porém, ao contrário de outrora, quando Greenspan vislumbrou “exuberância irracional”, agora é de uma “bolha racional” que se trata.

A mão invisível do mercado deu lugar a uma outra mão, que é cada vez mais visível, todavia, também cada vez mais deslocada da realidade. É o que acontece quando a taxa de desconto se aproxima do zero: os fluxos de caixa descontados disparam para o infinito. A actualização dos fluxos de caixa até pode estar certa, a taxa de desconto é que não porque, se estivesse, significaria que tinha deixado de existir risco. Mas, enfim, isto só acaba quando a música deixar de se ouvir.»

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