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09/07/2018

Crónica da anunciada avaria irreparável da geringonça (143)

Outras avarias da geringonça.

Nos tempos do Estado Novo dizia-se que os seus adeptos eram os situacionistas e contavam-se imensas histórias sobre a nomenclatura do regime. Numa dessas histórias, verídica neste caso, o almirante Américo Thomaz, um factótum que foi último presidente da República, durante uma das suas visitas, disse com grande humor involuntário: «esta é a primeira vez que aqui venho, desde a última que cá estive».

Lembrei-me desta anedota por várias razões. O Estado Sucial em que vivemos é uma espécie de Estado Novo, onde os situacionistas que eram salazaristas foram substituídos por socialistas do PS ou do PS-D e finalmente porque o primeiro-ministro, ao anunciar pela quarta vez o início das obras da IP3, poderia muito bem ter como o almirante Thomaz: esta é a primeira vez que anuncio a obra depois das três vezes que já foi anunciada.

Onde a analogia entre Estado Novo e Estado Sucial termina é nas manifestações de desagrado que no primeiro caso eram tratadas à bastonada e no segundo são recebidas com uma certa bonomia, na melhoria hipótese, ou conformismo, na pior. Faz toda a diferença, reconheça-se. Na mais recente dessas manifestações, os «Precários no Ciência 2018», assim se auto-designam uns candidatos a empregos vitalícios que se apresentam como «investigadores», vestiram-se de preto e viraram as costas o Costa enquanto ele fazia um discurso onde prometeu «cinco mil lugares de emprego científico, três mil ainda em 2018 e 2000 em 2019». É pura filantropia com o dinheiro dos contribuintes num país que tem 14 pedidos de patentes por milhão de habitantes ou pouco mais de um décimo da média da UE (134 por milhão).

Outra diferença entre Estado Novo e Estado Sucial é que no primeiro a oposição estava na prisão, na clandestinidade ou no exílio e agora está no parlamento. Sendo certo que há igualmente uma semelhança no que respeita à oposição soi-disant colaborante que no estertor do salazarismo era representada pela Ala Liberal e no presente é representada, entre outros, pelo Partido Comunista. A semelhança termina quando os comunistas comparam Costa a Don Corleone, comparação que, apesar de apropriada a Costa, a Ala Liberal nunca faria a Marcelo Caetano, não por que Mario Puzo não tivesse ainda publicado «O Padrinho» nessa época (já o tinha feito em 1969) mas porque Sá Carneiro, Pinto Leite e os outros dez eram gente civilizada e ainda não havia blogues.

O quarto anúncio das obras do IP3 permite salientar outras diferenças entre Estado Novo e Estado Sucial. Entre elas a de que nenhum dirigente do Estado Novo se atreveria clamar a barbaridade demagógica de Costa: «ao fazer obra no IP3, estamos a decidir não fazer evoluções nas carreiras ou vencimentos».

Quanto ao estado da geringonça, já teve melhores dias. Ainda que ignoremos a comparação com Don Corleone, os recados do CêCê do PêCêPê são claros: põem Costa ao lado de Cristas (sempre é melhor do que compará-lo ao Don), mandam às urtigas as «pressões inaceitáveis» de Costa e de Marcelo para a aprovação do OE 2019 e enterram «o mito que era possível fazer a quadratura do circulo de corresponder à reposição de direitos e aceitar os ditames da União Europeia e do euro», como disse o camarada Jerónimo. Não adianta muito que César os tente assustar com o «isolamento» (é um argumento estúpido porque isolamento cultivam eles há décadas) ou Vieira da Silva lhes acene com os amanhãs que cantam da geringonça (andam a cantar amanhãs desde a fundação em 1921).

Registemos a reencarnação de Centeno em Atenas como Dijsselbloem dando conselhos aos gregos para prosseguirem as reformas do mercado de trabalho, que o governo a que ele pertence está a reverter, e as políticas de austeridade que cá se mantém sob a forma de «cativações» e outros expedientes - o ano passado não foram gastos 4,3 mil milhões da despesa orçamentada, incluindo 556 milhões de cativações, numa complicada engenharia orçamental que torna as contas públicas parecidas com as de uma organização clandestina.

A maior vítima dessa engenharia opaca é o investimento público que continuou a cair até Maio. O diagrama seguinte mostra os desvios da execução da despesa em relação ao orçamentado e evidencia que os cortes da despesa de investimento estão a ir para pagar salários e juros, ou seja para manter feliz a clientela eleitoral da geringonça e pagar a festa aos credores.

Fonte

Há números que, só por si, mostram como o Serviço Nacional de Saúde está doente. O ano passado os 130 mil trabalhadores do ministério da Saúde faltaram 1,75 milhões de dias por doença, 1,24 milhões de dias por licença de parentalidade, 170 mil por acidente em serviço ou doença profissional e 120 mil por greve, no total o equivalente praticamente a um mês por cabeça. Em cima deste absentismo endémico, acrescentem-se os efeitos da redução do horário para as 35 horas que se começarão a sentir em pleno a partir de Setembro, mesmo com os milhares de admissões que o governo prometeu, e recordem-se as mentiras estúpidas que Costa e os seus ajudantes ofereceram ao povo ignaro de que tal reversão não teria consequências orçamentais.

Tal como o algodão no anúncio da Sonasol não enganava, também a dívida pública também não engana. [Aqui entre nós, isso não era totalmente verdade porque no consolado do animal feroz até a dívida pública era escondida para baixo do tapete com a conivência daquela pachorrenta criatura exalando seriedade por todos os poros chamada Teixeira dos Santos.] Agora, sob o Procedimento dos Défices Excessivos é mais difícil de esconder e por isso ficámos conhecer o novo recorde de Maio: 250,3 mil milhões de euros.

Se acreditarmos no mago das Finanças Públicas residente em Belém (o que carece de muito boa vontade, atendendo às habituais trapalhadas em que a criatura se envolveu desde o Cristo que não desceria à terra, à Vichyssoise e a várias outras), a coisa agora sobe mas vai descer mais tarde. Descerá? Claro que a dívida bruta poderá descer para o que basta diminuir o saldo da almofada de depósitos. Quanto à líquida, receio que Cristo não desça a terra e a Vichyssoise seja um caldo de galinha.

Credo quia absurdum (fonte)
Pode especular-se se dívida pública vai descer ou subir. Já quanto à venda de carros não há razões para especular - subiu mais uma vez 6,4% em Junho e 5,4% no semestre. O mesmo quanto à taxa de poupança - continua a descer.

Fonte
Ora como a produtividade e o crescimento dependem do investimento e o investimento depende da poupança, estamos conversados. E, a propósito, a quem imagine que a banca dispõem de biliões para crédito ao investimento produtivo, recordemos que a banca continua prenhe de crédito malparado o qual segundo os números do BCE (citados pelo Expresso) em 2017 atingia 26 mil milhões, o equivalente a 17% do total crédito concedido ou seja três vezes mais do que a média europeia. Por isso, os bancos não estão para aí voltados e preferem continuar a emprestar para a compra de popós e casinhas.

É claro que sempre podemos esperar pelo milagre de Portugal ser invadido por estrangeiros dementes dispostos a investir resmas de milhares de milhões num país com um mercado interno que vale menos do que a Catalunha e que tem uma produtividade real do trabalho que vale pouco mais de metade da média da UE.

3 comentários:

Anónimo disse...

Américo de Deus Rodrigues Tomás foi o mais brilhante oficial da Marinha Portuguesa no século XX. Ponto final.

As suas cartas do fundo marítimo, ao longo da costa portuguesa, levaram a que eu tenha visto e ouvido (na TV, há uns 10-12 anos) um oficial superior da Marinha Portuguesa afirmar que com as cartas de Américo Tomás não precisavam de GPS ou de outras modernices.

Infelizmente para o Almirante, foi politicamente aproveitado já na velhice. Daí o trabalho que ele (Presidente da Rwpública) dava aos funcionários da Censura, sita no Palácio Foz, à conta dos seus discursos (cómicos) mas que ele não queria ver alterados.

Cumprimenta

H Mota disse...

O IP3 vem na linha do teatro Variedades. Já se iniciaram as obras pelo menos 3 vezes.

Pedro Ferreira disse...


Excelente trabalho, os números não enganam, a desgraça acontecerá novamente e depois vem a conversa que ninguém deu por nada e a culpa vai ser da Europa.