O artigo que vou citar de seguida, publicado pelo Expresso (sob licença do Project Syndicate) com o título «Morte ou Glória na Rússia», aborda o regime putinista numa perspectiva pouco usual mostrando como instrumentaliza a tradição russa e a religião cristã ortodoxa para contaminar as mentes e impor a sua ordem despótica e corrupta, o que em consequência ilumina as razões por que muita gente conservadora no Ocidente se deixa fascinar pelo Czar Vladimiro.
Para quem o autointitulado semanário de referência (de reverência, como aqui parodiamos) suscitar anticorpos e for um obstáculo à leitura, sempre digo que o Expresso é uma instituição democrática com defeitos e qualidades. Publica coisas detestáveis, como um lip service regular à esquerdalhada, nomeadamente ao PS, como publica opinião desalinhada de gente com independência e qualidade intelectual,
«Voam rumores na Rússia relativos a manobras veladas sobre quem substituirá o Presidente Vladimir Putin, uma vez que a sua guerra de agressão na Ucrânia falhou de forma tão desastrosa. Uma luta desta natureza não pode deixar de expor as patologias mórbidas da política russa. Os principais intervenientes não são partidos políticos organizados, mas antes bandos de oligarcas que presidem aos vários nodos informais do poder.
Isto explica porque é que a força militar da Rússia mais eficaz na linha da frente com a Ucrânia, o mercenário Grupo Wagner, nem sequer faz parte do exército russo. A Rússia é hoje uma terra de senhores da guerra, algo que normalmente se associa a Estados-pária e Estados falhados. Os seus líderes atuais e aspirantes estão a traficar sonhos febris de glória no campo de batalha. Está implícita nesta cultura marcial uma perspetiva hobbesiana da vida como solitária, pobre, desagradável, brutal e curta — e com um valor cada vez menor.
A ascensão dos exércitos privados na Rússia e nas suas cercanias originou alguns desenvolvimentos genuinamente divertidos. Por exemplo, no ano passado, antigos membros das forças armadas dos EUA e de outros países ocidentais organizaram uma unidade militar de voluntários para combater pelo lado ucraniano. Com uma ironia perfeita, denominam-se Grupo Mozart — uma resposta direta aos mercenários do Wagner (já que ambos têm nomes de compositores alemães). “Só podemos esperar que bombardeiem as posições do exército russo com armas mais potentes que Mozartkugeln de chocolate” (bombom de origem austríaca).
Mas o humor acaba aí. A aparente reversão da Rússia a um sistema de senhores da guerra foi instigada por uma corrente de fundamentalismo religioso que celebra abertamente a morte. Alguns membros do clero russo têm afirmado às suas congregações que só poderão “tornar-se eles próprios” através do ato de matar. A “operação militar especial” na Ucrânia, dizem-lhes, é uma luta por “toda a criação de Deus”. Como afirmou um dos principais propagandistas de Putin, Vladimir Solovyov, numa mensagem de Ano Novo na televisão russa: “A vida é muito sobrevalorizada. Porquê temermos o que é inevitável? Especialmente quando vamos para o céu. A morte é o fim de um caminho terreno e o início de outro. Não deixem o medo da morte influenciar as vossas decisões. Só vale a pena vivermos por algo que possamos dar a vida, é assim que deve ser... Estamos a lutar contra satanistas. Esta é uma guerra santa, e temos de vencer.”
Da mesma forma, Magomed Khitanaev, teólogo checheno e comandante do exército russo, retrata a Ucrânia como a Sodoma e Gomorra dos últimos dias: “Perguntamos: ‘Ó ucranianos, porque permitiram desfiles gay em Kiev, Kharkiv e Odessa? Porque o permitiram? Porque não se insurgiram contra eles, contra o vosso governo que foi dominado pelos fascistas?’ Sem vergonha perante Deus, as pessoas espalham aberta e manifestamente a sua depravação.”
Para compreendermos os ideólogos contemporâneos russos como Solovyov e o chamado “filósofo da corte” de Putin, Aleksandr Dugin, temos de examinar a tradição do “cosmismo” russo, um movimento filosófico iniciado por um educador do século XIX, Nikolai Fedorov. Como escreve Jules Evans, filósofo na Universidade Queen Mary de Londres, Fedorov “foi apelidado de ‘Sócrates de Moscovo’, devido aos seus hábitos ascéticos e à sua filosofia radical. Tinha um objetivo global: a consecução da imortalidade e a ressurreição dos mortos”.
Entre os seguidores de Fedorov, no século XX, encontram-se o cientista soviético Konstantin Tsiolkovsky (que teorizou sobre as viagens no espaço), o escritor de ficção científica Alexander Bogdanov (que acreditava que se poderia prolongar a vida através de transfusões de sangue) e, numa coincidência adequada, o pensador religioso Vladimir Solovyov.
Segundo Evans, este primeiro Vladimir Solovyov apelava a “uma teocracia universal sob um czar russo, para acelerar a ‘longa e difícil passagem da Humanidade-animal para a Humanidade-Deus.’” Uma vez atingido esse objetivo, os seguidores da fé “tornar-se-iam seres espirituais imortais: até agora, só Cristo atingiu este estágio, mas toda a Humanidade seguiria o mesmo caminho”. Enquanto Solovyov acreditava que esta evolução poderia ser apressada com magia, o próprio Fedorov defendia meios científicos. Mas, em última análise, ambos “concordavam que a Humanidade seria salva pela teocracia russa”.
Denys Sultanhaliiev, da Universidade de Tartu, explorou as relações entre os dois Solovyovs e determinou uma linhagem clara para o cosmismo russo, tanto no seu formato místico como no seu formato científico. Existe uma linha direta entre o cosmismo que prevaleceu na primeira década da União Soviética e o niilismo e a temeridade nuclear atualmente exibidos com Putin.
A crença na ressurreição e na vida eterna é essencial. Mas o cosmismo só poderia emergir no âmbito da versão Ortodoxa Russa da Cristandade, cuja fórmula básica é “Deus tornou-se homem para que o homem se possa tornar Deus”. É assim que os cosmistas interpretam o surgimento de Cristo Deus-homem: como um modelo que toda a Humanidade deveria seguir. Pelo contrário, Martinho Lutero via o homem como um excremento de Deus, como algo que saíra do ânus de Deus.
Enquanto assistimos ao desenrolar da loucura ideológica na Rússia, temos de estar conscientes das suas raízes na Ortodoxia Russa. Muitas pessoas no Ocidente veem hoje essa tradição como um antídoto contra a decadência liberal que o protestantismo ocidental terá supostamente desencadeado. De uma forma perversa, têm razão: a morte resolve todos os problemas.»
Isto explica porque é que a força militar da Rússia mais eficaz na linha da frente com a Ucrânia, o mercenário Grupo Wagner, nem sequer faz parte do exército russo. A Rússia é hoje uma terra de senhores da guerra, algo que normalmente se associa a Estados-pária e Estados falhados. Os seus líderes atuais e aspirantes estão a traficar sonhos febris de glória no campo de batalha. Está implícita nesta cultura marcial uma perspetiva hobbesiana da vida como solitária, pobre, desagradável, brutal e curta — e com um valor cada vez menor.
A ascensão dos exércitos privados na Rússia e nas suas cercanias originou alguns desenvolvimentos genuinamente divertidos. Por exemplo, no ano passado, antigos membros das forças armadas dos EUA e de outros países ocidentais organizaram uma unidade militar de voluntários para combater pelo lado ucraniano. Com uma ironia perfeita, denominam-se Grupo Mozart — uma resposta direta aos mercenários do Wagner (já que ambos têm nomes de compositores alemães). “Só podemos esperar que bombardeiem as posições do exército russo com armas mais potentes que Mozartkugeln de chocolate” (bombom de origem austríaca).
Mas o humor acaba aí. A aparente reversão da Rússia a um sistema de senhores da guerra foi instigada por uma corrente de fundamentalismo religioso que celebra abertamente a morte. Alguns membros do clero russo têm afirmado às suas congregações que só poderão “tornar-se eles próprios” através do ato de matar. A “operação militar especial” na Ucrânia, dizem-lhes, é uma luta por “toda a criação de Deus”. Como afirmou um dos principais propagandistas de Putin, Vladimir Solovyov, numa mensagem de Ano Novo na televisão russa: “A vida é muito sobrevalorizada. Porquê temermos o que é inevitável? Especialmente quando vamos para o céu. A morte é o fim de um caminho terreno e o início de outro. Não deixem o medo da morte influenciar as vossas decisões. Só vale a pena vivermos por algo que possamos dar a vida, é assim que deve ser... Estamos a lutar contra satanistas. Esta é uma guerra santa, e temos de vencer.”
Da mesma forma, Magomed Khitanaev, teólogo checheno e comandante do exército russo, retrata a Ucrânia como a Sodoma e Gomorra dos últimos dias: “Perguntamos: ‘Ó ucranianos, porque permitiram desfiles gay em Kiev, Kharkiv e Odessa? Porque o permitiram? Porque não se insurgiram contra eles, contra o vosso governo que foi dominado pelos fascistas?’ Sem vergonha perante Deus, as pessoas espalham aberta e manifestamente a sua depravação.”
Para compreendermos os ideólogos contemporâneos russos como Solovyov e o chamado “filósofo da corte” de Putin, Aleksandr Dugin, temos de examinar a tradição do “cosmismo” russo, um movimento filosófico iniciado por um educador do século XIX, Nikolai Fedorov. Como escreve Jules Evans, filósofo na Universidade Queen Mary de Londres, Fedorov “foi apelidado de ‘Sócrates de Moscovo’, devido aos seus hábitos ascéticos e à sua filosofia radical. Tinha um objetivo global: a consecução da imortalidade e a ressurreição dos mortos”.
Entre os seguidores de Fedorov, no século XX, encontram-se o cientista soviético Konstantin Tsiolkovsky (que teorizou sobre as viagens no espaço), o escritor de ficção científica Alexander Bogdanov (que acreditava que se poderia prolongar a vida através de transfusões de sangue) e, numa coincidência adequada, o pensador religioso Vladimir Solovyov.
Segundo Evans, este primeiro Vladimir Solovyov apelava a “uma teocracia universal sob um czar russo, para acelerar a ‘longa e difícil passagem da Humanidade-animal para a Humanidade-Deus.’” Uma vez atingido esse objetivo, os seguidores da fé “tornar-se-iam seres espirituais imortais: até agora, só Cristo atingiu este estágio, mas toda a Humanidade seguiria o mesmo caminho”. Enquanto Solovyov acreditava que esta evolução poderia ser apressada com magia, o próprio Fedorov defendia meios científicos. Mas, em última análise, ambos “concordavam que a Humanidade seria salva pela teocracia russa”.
Denys Sultanhaliiev, da Universidade de Tartu, explorou as relações entre os dois Solovyovs e determinou uma linhagem clara para o cosmismo russo, tanto no seu formato místico como no seu formato científico. Existe uma linha direta entre o cosmismo que prevaleceu na primeira década da União Soviética e o niilismo e a temeridade nuclear atualmente exibidos com Putin.
A crença na ressurreição e na vida eterna é essencial. Mas o cosmismo só poderia emergir no âmbito da versão Ortodoxa Russa da Cristandade, cuja fórmula básica é “Deus tornou-se homem para que o homem se possa tornar Deus”. É assim que os cosmistas interpretam o surgimento de Cristo Deus-homem: como um modelo que toda a Humanidade deveria seguir. Pelo contrário, Martinho Lutero via o homem como um excremento de Deus, como algo que saíra do ânus de Deus.
Enquanto assistimos ao desenrolar da loucura ideológica na Rússia, temos de estar conscientes das suas raízes na Ortodoxia Russa. Muitas pessoas no Ocidente veem hoje essa tradição como um antídoto contra a decadência liberal que o protestantismo ocidental terá supostamente desencadeado. De uma forma perversa, têm razão: a morte resolve todos os problemas.»
1 comentário:
Esse Zizec é um perfeito imbecil. Mais provável, um aldrabão encartado. Os portugueses estão tão intoxicados que não têm a menor noção do que ocorre no terreno nem das origens do conflito. É tudo uma caricatura ridícula.
Os europeus até aplaudem a sabotagem americana do Nordstream, que os deixa a rapar o frio do Inverno e a pagar a energia caríssima. Síndroma de Estocolmo.
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