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24/04/2019

SERVIÇO PÚBLICO: As raízes do Brexit


Talvez pelo seu passado de causas fracturantes, quando já tinha idade para ter juízo, não tenho levado muito a sério Sérgio Sousa Pinto. Por isso, foi com alguma surpresa que li no Expresso do fim de semana o seu texto «Os ingleses na sua ilha», uma visão lúcida sobre as raízes do Brexit que aqui transcrevo em benefício dos leitores que não frequentam o semanário de reverência.

«A confusão e caos em que o 'Brexit' se transformou têm sido um bálsamo para inúmeras famílias no continente. A esquerda arcaica, a esquerda cosmopolita e globalista, a direita liberal, os beatos da Europa, os seus senhores, e, por todos, a picareta falante Guy Verhofstadt, escondem mal o seu íntimo regozijo com a débâcle britânica, e sobretudo inglesa. Infelizmente, não há razões para festejos. A saída do Reino Unido representa muito mais do que uma perda quantitativa para a Europa, medida em PIB, comércio, orçamento, influência. A saída do Reino Unido terá um impacto qualitativo na Europa pós-'Brexit', no sentido em que a Europa sairá modificada na sua natureza, resultará numa qualquer outra coisa, ainda impossível de antecipar, transformada a um nível muito mais profundo do que a mera amputação de uma ilha. O que o futuro reserva ao Reino Unido não é problema nosso. O impacto da sua saída no projeto de integração continental, no seu desenho e no seu. destino, não pode deixar de o ser. A Europa é tributária de um núcleo de valores políticos e históricos, que são o legado cultural britânico à nossa civilização comum, e de que o Reino Unido tem sido, à sua maneira, guardião. O espírito da integração europeia repousa, em não pequena medida, na adesão de todos a esse tronco central, à tradição da liberdade e às suas instituições, que, devidamente testadas pelo tempo, a garantem. Uma parte importante da Europa que saiu de si para ir ao encontro do mundo, a Europa pós-colonial, separa-se do conjunto, deixando-nos num plano inclinado, que adorna em direção ao centro europeu, germânico, eslavo, de tradição e cultura mais comunitarista que liberal.

É natural que Verhofstadt, ex-primeiro-ministro de um país criado por conveniência dos ingleses, a quem não agradava ter uma grande potência continental na outra margem do canal da mancha, encontre na construção da Europa uma vocação nacional mais elevada. Cada país é, igualmente, prisioneiro da sua circunstância presente e passada. Nós, portugueses, ficaremos perifericamente atracados a uma aliança continental, lado a lado com a Espanha, mais deslaçados das nossas históricas alianças atlânticas, e em piores condições para valorizar as nossas solidariedades lusófonas e o seu significado para uma Europa com prioridades longínquas das nossas.

A integração do Reino Unido na UE foi um casamento de conveniência que correu mal desde o início, e, como acontece nos divórcios, nenhuma parte carrega sozinha a responsabilidade pelo fracasso. Como se explicam as fundas divisões que opõem os britânicos, independentemente dos partidos, sobre a Europa, e que culminaram no referendo de 2016? Em 1961, Harold Macmillan apresentou o primeiro pedido britânico de adesão à CEE. Quando o seu negociador Edward Heath alcançou um compromisso satisfatório, De Gaulle vetou o acordo e humilhou os ingleses. Em 1967, novo pedido é feito, desta vez pelo Governo trabalhista de Wilson. Novo veto de De Gaulle. Em 1970, Heath, agora primeiro-ministro (e amigo de Pompidou), apresenta terceiro pedido, que conduz finalmente à adesão plena em 1973. Mas o acordo só foi alcançado mediante a aceitação de condições muito penalizadoras para o Reino Unido, que paga muito para o orçamento comunitário e recebe pequeno retorno através da PAC, desenhada à medida da agricultura francesa. Em 1975, para salvar o Partido Trabalhista, Wilson convoca um referendo sobre a permanência na CEE exatamente o mesmo que os conservadores são acusados de ter feito em 2016, para salvar o Partido Conservador. A diferença é que, por milagre, o 'Sim' ganha em 1975. Tony Ben, Michael Foot e Enoch Powell fazem campanha pelo 'Não'; Roy Jenkins e Margareth Thatcher fazem campanha pelo 'Sim'. A guerra, dividindo os partidos a meio, é fratricida. Resolvida a permanência, Thatcher, agora primeira-ministra, não larga Mitterrand e Kohl: quer o chamado cheque inglês. O debate azeda, o dinheiro acaba por vir, mas Thatcher já passou resolutamente para o campo eurocético. Assina Maastricht, mas garante a exclusão do seu país da moeda única. Contra a sua vontade, pouco antes da sua queda, adere ao Mecanismo Europeu de Taxas Câmbio (MTC). A libra, irrealisticamente valorizada, sofre um brutal ataque especulativo na chamada 'quarta-feira negra'. Os ingleses pedem ao Bundesbank para vir em seu socorro, baixando a taxa de câmbio do marco, a moeda de referência do sistema. Os alemães recusam. O Reino Unido sai aos tombos do MTC. Outra humilhação. Assim foi, até à "Europa reformada"; que Cameron tirou da cartola, para tentar salvar o referendo. A Europa de Guy Verhofstadt, naturalmente, não cedeu. O dilema de Verhofstadt não é o dilema dos ingleses. É infinitamente mais pequeno.»

1 comentário:

Anónimo disse...

Para mim, o sr pinto vive numa parcial ignorância da História.
Para mim, a Inglaterra sempre explicou como vivia: we are europeans, but we are not continentals. Lá, há o breakfast e o continental breakfast.
Sempre tramaram, com notável eficácia, as potências que tinham o desplante de se apropriarem do continente.