«Arrogância cultural
”Eles abafam piedosamente o sorriso ao falarem de cientistas que nunca leram uma obra relevante da literatura inglesa. Descontam-nos como especialistas ignorantes. Contudo, a sua própria ignorância e a sua própria especialização são alarmantes. Por diversas vezes tenho estado presente em encontros de pessoas que, pelos padrões da cultura tradicional, são considerados muito cultos e que, com considerável prazer, têm expressado a sua incredulidade pela ignorância dos cientistas. Uma ou outra vez fui provocado e perguntei à minha companhia quantos deles conseguem descrever a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta foi fria e foi também negativa. Todavia, eu perguntei algo que pode ser o equivalente científico de: ‘Já leu uma obra de Shakespeare?’”
Charles Snow, ”The Two Cultures”
Existe nas sociedades modernas, uma perigosa segmentação cultural, que se tem vindo a agravar com a especialização do ensino, entre a formação com origem nas chamadas ”humanidades” e com origem nas ciências. Se se entender a cultura, muito simplesmente, ”como aquilo que torna a vida digna de ser vivida”, como admite T. S. Eliot (Notas para uma Definição de Cultura), uma equilibrada articulação entre diferentes actividades e diferentes áreas do saber é essencial para o sucesso cultural, e a sua ausência pode conduzir à desintegração cultural, conducente, ela própria, à desintegração social.
Os efeitos desta segmentação são, porém, agravados por um sentimento de arrogante superioridade moral muitas vezes demonstrado por alguns ”intelectuais literários”, que se consideram a si mesmos detentores da ”verdadeira cultura”, desvalorizando como mera tecnocracia os conhecimentos obtidos pelo estudo das ciências. Este sentimento, de raízes pré-modernas, tem atravessado praticamente toda a modernidade, alimentando recorrentes controvérsias, e carrega os sinais claros de uma expressa marca social que, entre outras manifestações, sobrepõe o pensamento à acção, as artes aos ofícios e o ”intelectual” ao ”manual”.
Este mesmo sentimento re-emergiu recentemente entre nós, para desvalorizar as qualificações científicas dos economistas para o desempenho de funções de representação política, contrapondo-lhe a superioridade dos ”conhecimentos literários” (ainda que por vezes não passem da especialização em generalidades). Mas sob o véu das diferenças culturais, o que esta linha argumentativa acaba por transportar é a ideia subliminar de uma aristocrática distinção social, insinuando que a origem patrícia assegura melhor preparação para o desempenho de funções políticas do que a origem plebeia.
O que mais surpreende nesta posição é que ela provenha de sectores de esquerda, provavelmente os mais afectados pela burguesa corrosão ”pós-modernista”. Primeiro, porque a esquerda, originariamente trabalhista e programaticamente progressista, foi tradicionalmente favorável às virtudes das ciências, vistas como fonte de progresso. Segundo, porque o conhecimento técnico e científico proporciona mais oportunidades de progressão social do que a ”cultura literária”. Terceiro, porque se perguntarem aos trabalhadores se preferem ser politicamente representados por quem saiba manter uma conversação erudita nos salões sociais ou por quem compreenda os mecanismos necessários à criação e preservação de empregos e à melhoria dos níveis de vida, o que é que acham que eles vão escolher?
É que, como lembrava Alfred Marshall, no final do século XIX, ”… o carácter do homem tem sido moldado pelo seu trabalho de todos os dias e pelos recursos materiais que desse modo procura, mais do que por qualquer outra influência, com excepção dos seus ideais religiosos; e as duas grandes acções formadoras da história mundial têm sido a religiosa e a económica”. Sendo assim, saber de economia talvez seja conveniente.»
O post «Humanismos e Trivialidades» do Semiramis ajuda a compreender as raízes da arrogância «humanista» - basicamente o desprezo pelo trabalho lato sensu.
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