Tal como a explicação do visconde pode ser fundada nos mapas existentes que mostram os rios a passar pelo meio das cidades, também a tese dessas autoridades de que são os lucros das empresas a causar a inflação é sustentada por diagramas, como o do FMI.
A semana passada o economista Ricardo Reis expôs a falácia em linguagem simples e acessível na sua coluna R ao Quadrado do Expresso.
«As margens brutas de muitas empresas têm subido nos últimos 18 meses. Igualmente, os lucros totais do sector empresarial subiram nos EUA e na zona euro. Tendo em conta que são estas empresas que têm aumentado os preços dos seus bens, podemos por isso dizer que o aumento na inflação se deve à cobiça das empresas na busca de mais lucros? O culpado da inflação é a ganância?
Esta hipótese tem o seu apelo. Não só porque ela permite alimentar as teorias da conspiração, que imaginam uma associação de perversos capitalistas algures num iate a congeminar planos para enriquecer à custa do sofrimento dos outros, mas também porque há uma atração humana por encontrar um culpado para o que quer que aconteça. Para mais, é habitual culpar-se a cobiça ou a ganância quando a economia não funciona, da mesma forma que antes se culpavam os deuses da chuva quando as colheitas eram más, e desta vez não é exceção. Mas, se é fácil perceber porque é que as pessoas gostam destas explicações, é mais difícil pensar nelas durante uns minutos e conseguir perceber qual é a substância por trás delas.O objetivo de uma empresa é ter lucros. Conheço poucas empresas que se contentem com ganhar menos, dentro das regras e desde que haja concorrência, até porque se o fizessem, rapidamente iam à falência. Isto não é diferente em 2023 do que era em 2020 ou 2013. Porque é que esta cobiça produz inflação hoje, mas não nas últimas duas décadas? Magicamente, a cobiça aumentou?
Pelo contrário, tem havido um aumento no tamanho das empresas em vários sectores desde aproximadamente a viragem do século. Há sinais, não completamente conclusivos mas certamente sugestivos, de que isto aumentou o poder de mercado destas empresas, e com isso as suas margens e lucros. Por isso, se o aumento das margens fosse um dos grandes determinantes da inflação, seria de esperar que os últimos 20 anos tivessem sido de inflação acima do esperado. Pelo contrário, este período viu uma inflação estável, próxima dos 2%.
Além disso, quando se culpa o aumento das margens pela inflação, incorre-se numa confusão clássica entre níveis e taxas de crescimento. Um aumento das margens das empresas levaria a um aumento no nível dos preços. No período desse aumento, a inflação, que é apenas a taxa de crescimento do nível dos preços, seria alta. Mas logo a seguir, com os preços no seu novo nível, a inflação voltaria a ser perto de zero. No entanto, nós temos uma inflação elevada há pelo menos dois anos, e até há uns meses ela estava a crescer. Ou seja, para explicar a inflação que vivemos não bastaria que as margens fossem mais altas, mas elas teriam de ter aumentado cada vez mais depressa todos os meses.
Com certeza não é coincidência que as margens das empresas tenham subido precisamente quando a inflação aumentou, certo? Correto. Uma das características da inflação é que, quando os preços sobem depressa, de início os salários não aumentam tão rapidamente. O poder de compra dos trabalhadores cai. Essa é uma das principais razões pelas quais é tão importante combater a inflação. Ora, se os preços sobem mais depressa do que os salários, então, para muitas empresas cujos custos dependem sobretudo do custo com os trabalhadores, as margens aumentam. Logo, faz parte do processo normal inflacionista as margens aumentarem. Isto não quer dizer que seja o aumento das margens que causa a inflação. Apenas quer dizer que os dois estão aritmeticamente ligados. Naturalmente, nos próximos dois anos, os salários vão subir mais do que os preços, e as margens das empresas vão descer. Não porque elas passem a ter menos cobiça, mas porque os preços tendem a ser mais flexíveis, e a ajustar-se mais rapidamente, e os salários o fazem mais tarde com um atraso.
Se não são as margens, o que determina então a inflação? Acima de tudo, é a política monetária. Todos os meses, a economia muda, algumas margens sobem e outras descem, o preço da energia pode subir ou descer, a produtividade pode estagnar ou disparar. Todos estes fatores afetam o nível dos preços. Mas em relação a todos eles, a política monetária pode reagir. Mudando o retorno em investir em euros (a taxa de juro) o banco central muda a atração de poupar em euros ou antes investir em capital físico. Ao fazê-lo, muda por isso a procura por esses euros. Igualmente, o banco central muda a quantidade de dinheiro em circulação em relação à quantidade de bens que podem ser comprados e vendidos.
Um preço não é mais do que o valor de um bem em euros, e a inflação não é mais do que uma medida da perda de valor desses euros. A inflação está alta hoje porque a política monetária há um ano ou dois fixou as taxas de juro demasiado baixas, ou criou demasiado dinheiro, em relação ao que seria adequado para o nível de produção de bens na nossa economia. Fê-lo em parte por boas razões (a alternativa seria pior), em parte porque é difícil acertar neste controlo em tempos muito voláteis, em parte por erro. Ao mesmo tempo, os erros foram corrigidos nos últimos 12 meses, e estou otimista que, por isso, a inflação vai cair e estar perto de 2% em 2025. Neste sobe e desce da inflação, lucros, salários e muitas outras variáveis mudam mas não são elas que estão a causar os movimentos da influência. Antes, elas são as consequências do processo.»
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