«Não, não soube sempre o que eram sem-abrigo. E percebo até porque existe um grande desconhecimento quanto aos sem-abrigo. Vivi completamente equivocado e enganado: diziam-me que eram pobres, depois diziam-me que eram bêbedos e drogados e quando vim para o Júlio de Matos em 1984 e vi que os doentes mais graves não estavam no hospital, mas dormiam à minha porta, é que percebi uma coisa espantosa - ‘então, vivi com eles um quarto de século sem saber quem eram’. Por isso, percebo que ninguém saiba, desde o mais humilde cidadão ao Presidente da República, eu próprio também não soube durante um quarto de século.
(...) admito que haja 5 a 10% dos casos em que não conseguimos fazer um diagnóstico psiquiátrico. Mas deve-se ver o pacote todo em conjunto, e isso é impossível por várias razões. Nos últimos anos tenho feito várias apresentações em que digo que só temos de fazer duas coisas e eu em 10 segundos digo tudo - se fosse reconhecida a importância da saúde mental e da psiquiatria, estaria desbloqueado o caminho para a resolução da problemática das pessoas sem-abrigo. Em segundo lugar, é preciso colaborar porque nenhuma instituição nem ninguém consegue resolver o problema dos sem-abrigo sozinho. Se Portugal fizesse isto nos próximos 100 anos, resolvia 99% dos casos de sem-abrigo. (...)
A primeira vez que estudámos isso foi em 2001, com a amostra de rua da Santa Casa da Misericórdia. Fomos fundadores da equipa de rua. E quando chegámos aos 1000 casos de rua fomos fazer as contas: 56 ou 57% tinham álcool, depois havia 20% de psicoses, depois as drogas e as perturbações de personalidade. No total, era mais de 90%. Eu acho que isto não varia muito, é obvio que podemos sempre admitir que há 10% de pessoas sem qualquer tipo de patologia. Agora, eu nunca vi pobres na rua, é muito difícil ver isso, mas admito que se houver um terramoto como o de 1755 possa haver. (...)
Os sem-abrigo são como uma folha em branco, cada um vê o que quer, por isso é que é tão bom para os políticos e para toda a gente: se eu for uma pessoa com compaixão, eles servem para servir a minha compaixão, se eu for político, servem todos os políticos: os governos em funções, a oposição, e ainda os jornalistas e o povo. E quem quiser culpar os sem-abrigo também tem bons exemplos. Não digo que sejam mitos, mas cada um vai buscar a verdade que quer, como se fosse o todo.»
Excerto de uma entrevista a António Bento, psiquiatra e director do Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do Hospital Júlio de Matos