Our Self: Um blogue desalinhado, desconforme, herético e heterodoxo. Em suma, fora do baralho e (im)pertinente.
Lema: A verdade é como o azeite, precisa de um pouco de vinagre.
Pensamento em curso: «Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos
de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.
» (António Alçada Baptista)
The Second Coming: «The best lack all conviction, while the worst; Are full of passionate intensity» (W. B. Yeats)
Mostrar mensagens com a etiqueta o saber ocupa lugar. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta o saber ocupa lugar. Mostrar todas as mensagens

17/08/2025

Ponhamos as barbas de molho

Fonte

O diagrama, baseado nos dados do estudo Excess mortality attributed to heat and cold: a health impact assessment study in 854 cities in Europe, mostra o aumento do risco de morte em 854 cidades europeias nos dias mais quentes (ou mais frios), com temperaturas superiores (ou inferiores) em média a 99% dos dias do ano. As nossas cidades têm uma exposição relativamente elevada ao risco de ocorrência de temperaturas extremas, não obstante serem cidades costeiras em que a proximidade do mar ameniza as temperaturas, principalmente porque a maioria das habitações tem uma eficiência energética baixa e a percentagem que dispõe de ar condicionado é muito baixa.

03/08/2025

CASE STUDY: The benefits of AI are greatly exaggerated, at least for now and in the context of the Economy

«In early February Openai, the world’s most famous artificial-intelligence firm, released Deep Research, which is “designed to perform in-depth, multi-step research”. With a few strokes of a keyboard, the tool can produce a paper on any topic in minutes. Many academics love it. (...) 

Should you shell out $200 a month for Deep Research? (...) To help you decide, your columnist has kicked the tyres of the new model. How good a research assistant is Deep Research, for economists and others?

The obvious conclusions first. Deep Research is unable to conduct primary research, from organising polls in Peru to getting a feel for the body language of a chief executive whose company you might short. Nor can it brew a coffee, making it a poor substitute for a human assistant. Another complaint is that Deep Research’s output is almost always leaden prose, even if you ask it to be more lively. Then again, most people were never good writers anyway, so will hardly care if their ai assistant is a bit dull. (...) 

When it comes to data questions requiring more creativity, however, the model struggles. (...) The model has even greater difficulty with more complex questions, including those involving the analysis of source data produced by statistical agencies. For such questions, human assistants retain an edge.

06/07/2025

The emergence of Homo interneticus

Erasmo Amato

In 2004 Michael H. Goldhaber published the essay "The mentality of Homo interneticus: Some Ongian postulates" (*) anticipating that the Internet would create a new type of human being, the Homo interneticus that would succeed Homo sapiens vulgaris. Due to the excessive use of the Internet, the Homo interneticus would have his mind altered by the constant dispute for his attention and would lose the notion of time and space.

Goldhaber's essay, from which I have extracted the following excerpt, proved to be prescient and sheds some light on the intense struggles between the tribes that follow the various most extreme and exacerbated ideologies that fill the internet space today.

«Without notable clues to a particular identity being provided by how one was raised, being cast in a sea of ten billion or so rough and directionless equals would be too much of a challenge. A floating spar — or several — must be found to cling to. H. interneticus tends towards community on the basis not of birth so much as of what feels like commonality — tasks and goals inspired by those who resonate with one — whether from some inner, possibly inchoate sense of being, a chance encounter, a shared bit of history, an aptitude that finds use, an almost arbitrary predilection or just a desire for meaning, connection or focus. These Internet communities are unshackled by space, unbounded by borders, though probably dominated by a rough version of the English language. Like any community, their enfoldings multiply through use and mutual familiarity, providing what remains of the dimension of time.

If the printed book first helped bind the world of European science and scholarship through the universal use of learned Latin [13], that language was comprehensible only to an elite — and male — few. As booksellers ought a wider market, they helped propel vernacular tongues into standardized, written and printed form. New feelings of nationality were thus brought into being, further aided by the desire for those literate in each "tongue" to have access to professions such as law and to government positions. So arose the drive for "national self–determination," meritocracy and even democracy.

Where stands H. interneticus when it comes to nationalism and electoral democracy? As an inevitable member of multiple global communities, on the whole she finds the pull of any particular nationality waning, especially insofar as nationalism implies loyalty to a particular government and its actions. If an Internet community happens to veer in some undesirable direction, it is easy to secede and start a new one with other dissidents, and in next to no time. By contrast electoral politics and representative democracy is achingly slow and unreliable, necessitating compromise and often leaving one agonizing in opposition for year upon year. H. interneticus has no sense of the future — no tolerance, that is, for waiting. Change should occur right now, instantaneously.

But what of the real, material world? Internet community formation might be an adequate substitute for representative democracy in the world of the Internet itself, but how can environmental issues, poverty, war, violent crime, terrorism, medical care, and on and on, be dealt with just by changing the subject? My guess is that to a first approximation the answer is that, for H. interneticus, cyberspace is most of the real world, and the rest is an appendage of it. If anything is to be done about global warming, for example, it will be through communities coalescing on the Internet and then taking a variety of actions ranging from developing alternative modes of transport (or dispensing with it in favor of heightened use of the net to replace travel and shipping alike) to direct action powerful enough that governments and corporations will have little choice but to acquiesce.

As Internet communities proliferate and interweave they will take on more and more of the functions now more or less the monopoly of government and business alike. It isn’t much of a stretch to visualize the Internet successes such as Google, e–Bay and Amazon gradually being replaced by open source distributed processing just as Napster was by Gnutella. From there it is not much of a further stretch to imagine the transformation of all kinds of organizations into distributed Internet versions.»

___________

(*) The term "Ongian" evokes Walter J. Ong, the American Jesuit priest and professor of English literature,  who studied how the transition from orality to literacy influenced culture and changed human consciousness.

24/06/2025

Mitos (351) - O contrário do dogma do aquecimento global (XXXIII) - Pero que las hay, las hay

Outros posts desta série

Em retrospectiva: que o debate sobre o aquecimento global, principalmente sobre o papel da intervenção humana, é muito mais um debate ideológico do que um debate científico é algo cada vez mais claro. Que nesse debate as posições tendam a extremar-se entre os defensores do aquecimento global como obra humana – normalmente gente de esquerda – e os outros – normalmente gente de direita – existindo muito pouco espaço para dúvida, ou seja para uma abordagem científica, é apenas uma consequência da deslocação da discussão do campo científico, onde predomina a racionalidade, para o campo ideológico e inevitavelmente político, onde predomina a crença.

Nós aqui fazemos o possível para não ficar entalados entre o ruído da histeria climática que levada às suas últimas consequências conclui que o homo sapiens sapiens tem de ser erradicado para salvar o planeta, e o ruído das teorias da conspiração que consideram que o único problema sério com o ambiente é a histeria climática.

Os gráficos seguintes que foram produzidos pela Economist no princípio do ano mostram que dos dados disponíveis temos de concluir que com toda a probabilidade está em curso um processo de aquecimento global. 


Quais as causas e quais os remédios, se isso é um problema e quais as soluções, é uma outra estória. Não vamos entrar por aí para não acrescentar ruído à discussão.

24/01/2025

Mar de Aral, possivelmente o maior desastre ecológico de sempre, não resultou das mudanças climáticas, resultou do absurdo da economia soviética

«Outrora um paraíso aquático espetacular no coração da Ásia Central, o Mar de Aral hoje é um duro lembrete do impacto devastador das políticas de irrigação inadequadas que levaram ao seu desaparecimento, agravado pelos efeitos exacerbados das mudanças climáticas em um dos ecossistemas mais cativantes do mundo. À medida que as águas recuavam, elas deixavam para trás planícies incrustadas de sal, um ambiente bastante inóspito onde pouco pode prosperar. (...)

Na década de 1960, a União Soviética começou a desviar os principais rios de entrada do Mar de Aral – o Amu Darya originário das Montanhas Pamir e o Syr Darya das cadeias de montanhas Tien Shan – para fins de irrigação, principalmente para o cultivo de algodão. Isso levou a consequências catastróficas, incluindo perda de biodiversidade, o deslocamento de comunidades dependentes da pesca e o surgimento de riscos à saúde devido à exposição de sedimentos tóxicos. 

Tempestades de poeira e sal, alimentadas pelo leito marinho exposto, se espalharam pela região, afetando a qualidade do ar e a produtividade agrícola. A perda da influência moderadora do mar alterou os climas locais, levando a extremos de temperatura e interrupções nos padrões climáticos, como a intensificação da alta da Sibéria no inverno e o enfraquecimento da baixa quente da Ásia Central no verão.

Antes repleta de vida aquática diversa, incluindo espécies de peixes como a truta de Aral e o esturjão endêmico, a redução dos níveis de água devastou essas populações, interrompendo toda a cadeia alimentar aquática. Muitas espécies foram extintas ou estão à beira da extinção.

Mas além das espécies aquáticas, o Mar de Aral costumava ser um ponto de parada crucial para milhões de aves migratórias que viajavam pela rota migratória da Ásia Central. Essas aves, incluindo pelicanos, flamingos e várias espécies de aves aquáticas, dependiam dos pântanos do mar como áreas de reprodução e alimentação. No entanto, à medida que o mar encolheu, os habitats dos pântanos desapareceram, forçando as aves a alterar seus padrões de migração ou enfrentar sérios desafios para encontrar locais adequados de descanso e alimentação. (...)»

The Aral Sea Catastrophe: Understanding One of the Worst Ecological Calamities of the Last Century

05/01/2025

Mitos (347) - Da produção de graduados não nasce o desenvolvimento (4)

Continuação dos posts Da produção de graduados não nasce o desenvolvimento (1), (2) e (3)

mais liberdade

Como mostra o World Talent Ranking, ao contrário da mitologia dominante na narrativa oficial, o Portugal dos Pequeninos (PdosP) não só é pouco atractivo para os profissionais qualificados como a pouca atractividade tem vindo a decair, por várias razões e nomeadamente porque há a noção da carga fiscal excessiva, da pouca atracção para estrangeiros qualificados e porque ainda faz o pleno ao afastar os quadros locais.

Fonte

O quadro fica completo se aos dados World Talent Ranking acrescentarmos os dados do Eurostat de 2023, compilados pelo CoLabor, que nos mostram o que é chamado sobrequalificação e, que com toda a probabilidade, é muito mais qualificação inadequada, ou seja, não se trata tanto de termos doutorados a fazerem de licenciados ou destes a fazerem de bacharéis, mas de licenciados ou bacharéis em ogias que acabam em caixas de supermercado. Repare-se com o tempo a percentagem de "sobrequalificados" vem aumentando em linha com a generalização da ideia da "geração mais qualificada de sempre", baseada na premissa de que quantos mais, melhor, seja lá do que for. Isso mesmo é confirmado pelo facto de a percentagem de sobrequalificados ser mais alta precisamente nos profissionais com menos de 34 anos (22,5%) em relação ao escalão seguinte (13,9%)   

É claro que isto não é uma originalidade porque quase todos os países da UE têm um grau médio de "sobrequalificação" elevado e o PdosP com 16,6% até não fica muito mal no retrato, comparando bem com a média da UE (22%). O problema é que UE também está fortemente infectada pela "geração mais qualificada de sempre" em sintonia com os problemas de inadequação da mão-de-obra e da baixa e estagnada produtividade quando comparadas com as dos EUA.

15/12/2024

Mitos (346) - Da produção de graduados não nasce o desenvolvimento (3)

Continuação dos posts Da produção de graduados não nasce o desenvolvimento (1) e (2).

Já depois de ter escrito o post As gerações "mais educadas de sempre" são das mais incompetentes da OCDE, lembrei de ter lido recentemente o artigo «Is India’s education system the root of its problems?» onde se compara o relativo sucesso das políticas educacionais da China com o relativo insucesso das políticas educacionais da Índia diferença que, entre outras causas, explica como partindo ambos os países em 1970 com um PIB per capita praticamente igual chegaram à actualidade com a China a ter um valor cinco vezes maior.

No início do século em ambos os países menos de 10% das crianças frequentavam a escola, a diferença é que a China a partir dos anos 50 deu prioridade a aumentar a escolaridade primária e secundária enquanto a Índia deu prioridade a criar universidades de nível elevado em vez de expandir o ensino primário. No início dos anos 80, mais de 90% das crianças chinesas frequentavam uma escola primária e menos de 2% frequentavam a universidade, contra 70% e 8% na Índia, respectivamente,

No final da década de 80 os níveis de iliteracia eram de 22% na China e de 60% na Índia e, no que respeita à universidade, a China tinha uma clara maioria de graduados em engenharia e tecnologia e a Índia em ciências sociais. Os resultados foram duas mãos-de-obra completamente diferentes: a chinesa preparada para uma migração da agricultura para a indústria progressivamente mais avançada e a indiana para os serviços e a burocracia.

Para nossa infelicidade, as políticas educacionais do Portugal dos Pequeninos estão mais próximas da indianas do que da chinesas, não pelos problemas de baixa escolaridade primária e secundária mas pela falta de qualidade do ensino nestes níveis. Tal como em Portugal, onde uma parte significativa dos graduados nas áreas de ciência e tecnologia têm de emigrar para ter emprego decente, na Índia dos 1,5 milhões estudantes de engenharia que se formarão este ano estima-se que apenas 10% consigam emprego no ano seguinte.

11/12/2024

CASE STUDY: Um exemplo de pseudociência ao serviço do áctivismo anti-rácista

É um facto há muito conhecido que nos EUA a mortalidade infantil (bebés com menos de um ano) dos bebés negros é dupla dos brancos. Em 2020 um estudo publicado nos Proceedings of the National Academy of Sciences, concluiu que quando os bebés negros eram assistidos por médicos negros a mortalidade infantil diminuía para metade, uma conclusão muito convenientemente alinhada com o zeitgeist da época, ao ponto da Association of American Medical College se referir ao estudo como prova de «para recém-nascidos negros de alto risco, ter um médico negro é equivalente a um medicamento milagroso».

Em Setembro, um outro estudo (Physician–patient racial concordance and newborn mortality) de George J. Borjas e Robert VerBruggen, igualmente publicado nos Proceedings, analisou os mesmos dados do estudo anterior, identificou erros metodológicos e conclui que o peso demasiado baixo no nascimento tinha uma influência decisiva porque os bebé com menos de 1,5 kg representavam metade da mortalidade infantil e quando se considerava o peso não foi encontrada diferença mensurável entre os partos assistidos por médicos negros ou brancos. Na verdade o que se passou foi que os partos prematuros de bebés com peso insuficiente eram sobretudo assistidos por médicos brancos.

A Economist citou ambos os estudos e comentou estas conclusões sublinhando que o propósito principal que deveria ser a prevenção dos partos prematuros foi ignorado no primeiro estudo, estranhando que a questão do peso dos bebés não tenha sido considerada nem abordada no processo de revisão e sugerindo que os investigadores, as instituições e os mídias têm em certos casos duplicidade de critérios e se preocupem mais com a conformidade ideológica com as teses do áctivismo anti-rácista do que com a ciência. That's it.

24/11/2024

Mitos (343) - O contrário do dogma do aquecimento global (XXXII) - Os limites ao crescimento em 1972, segundo o Clube de Roma

Outros posts desta série

Em retrospectiva: que o debate sobre o aquecimento global, principalmente sobre o papel da intervenção humana, é muito mais um debate ideológico do que um debate científico é algo cada vez mais claro. Que nesse debate as posições tendam a extremar-se entre os defensores do aquecimento global como obra humana – normalmente gente de esquerda – e os outros – normalmente gente de direita – existindo muito pouco espaço para dúvida, ou seja para uma abordagem científica, é apenas uma consequência da deslocação da discussão do campo científico, onde predomina a racionalidade, para o campo ideológico e inevitavelmente político, onde predomina a crença.
______________

A COP29 realizou-se este ano no Azerbaijão, um país onde a produção de petróleo e gás representam metade do PIB cujo presidente de acredita, compreensivelmente, que «o petróleo e o gás são dons de Deus».   

Mme Sandrine Dixson-Declève, que falou em representação do Clube de Roma, fez uma intervenção incendiária onde a par das teses catastrofistas habituais do áctivismo ambientalista fez também a habitual ligação estúpida entre a direita e os inimigos do ambiente - «quem vota à direita não acredita em alterações climáticas», assim transformando o problema das mudanças climáticas numa questão partidária, mais até do que política. 

Model Standard Run as shown in The Limits to Growth

Se olharmos para as teses catastrofistas de Mme Dixson-Declève à luz das previsões catastrofistas do Clube de Roma no seu relatório de 1972 The Limits to Growth (pode ler aqui o texto integral nas suas mais de 200 páginas ou aqui um resumo de 13 páginas) que antevia o esgotamento de todos os principais recursos minerais nalgumas décadas seguida da fome generalizada, poderíamos concluir essas teses não tem qualquer credibilidade e que o Clube de Roma continua a contribuir para transformar uma questão científica numa questão ideológica, prestando um péssimo serviço à causa que se propõe defender.

26/10/2024

Portugal como destino atractivo para graduados internacionais (1)

Há dois meses a Economist publicou um estudo (*) muito interessante sobre a rejeição/atractividade dos graduados universitários em diversos países para se mudarem para outro país. O estudo foi baseado em dados de uma pesquisa anual a quase 200.000 pessoas de mais de 150 países e territórios realizada pela Gallup World Poll, em que é perguntado aos inquiridos (a Economist só considerou os que disseram ter concluído a graduação) se gostariam de se mudar permanentemente para um país estrangeiro e, se sim, qual.

No caso de Portugal o inquérito mostrou uma grande mudança de atractividade de 2010-12 para 2021-23. Neste segundo período se todos os graduados que gostariam de mudar para Portugal o tivessem feito a população graduada teria aumentado 140%. 


O quadro acima foi construído com dados de uma década entre 2010-23 (excluindo os anos da pandemia) e mostra estimativas do número de graduados que cada país poderia ganhar e perder se a mudança fosse fácil. O resultado de Portugal é à primeira vista um tanto surpreendente, no entanto quando se considera que são brasileiros a grande maioria dos graduados estrangeiros que desejariam mudar-se para Portugal o resultado fica menos surpreendente. A segunda nacionalidade mais representada - e isso volta a ser surpreendente - é a americana, o que a Economist atribui a mais voos para os EUA, o que não me parece plausível e será mais facilmente explicado por um fenómeno chamado Madonna que colocou Portugal no mapa para muitos americanos que ficaram a saber que existia um país simpático, com um clima agradável que os acolheria bem - o campus da Nova em Carcavelos (que um amigo da Católica chama invejosamente "escola de surf") tem algum peso neste contexto.

[Fica por explicar, por agora, o proporcionalmente reduzido número de graduados portugueses que responderam pretender mudar-se para outro país, quando se sabe que na última década centenas de milhares de graduados portugueses saíram de facto para o estrangeiro.] 

(Continua)

____________________

(*) Talent is scarce. Yet many countries spurn it

23/10/2024

Mitos (342) - O conservacionismo e as "espécies invasoras" (2)

Recapitulando, o conservacionismo, como qualquer das outras inúmeras quase-religiões que são os "ismos", alimenta-se de mitos. Muitos deles não resistem ao confronto com a realidade e a uma observação factual e objectiva, não obstante persistem por décadas ou séculos porque dão respostas à necessidade profunda que o homo sapiens tem de confirmar as suas crenças com "factos" cuidadosamente escolhidos com esse propósito. 

No post anterior referi o mito ecológico do dano inevitável que as espécies não nativas, geralmente designadas não por acaso como "espécies invasoras", causam às espécies nativas e ao ambiente. Neste post abordo algumas das consequências indesejáveis do isolamento (que, por exemplo, as ilhas proporcionam - um paraíso na terra para o nativismo militante) de que resulta um maior risco de doenças genéticas.

Um exemplo conhecido é o da Gran Canaria cujos habitantes têm uma incidência muito mais elevada do que a média de hipercolesterolemia familiar, de onde o fígado não processa eficazmente o colesterol, de onde resulta uma alta prevalência de diabetes (fonte: Familial hypercholesterolemia in Gran Canaria: Founder mutation effect and high frequency of diabetes).

Recentemente, um estudo do Jim Flett Wilson (JFW) do Instituto Usher da Universidade de Edimburgo (fonte: The Telegraph) examinou informações genéticas de mais de 44.000 pessoas em 20 regiões do Reino Unido e encontrou no País de Gales nove variantes genéticas causadoras de doenças com frequências muito mais altas do que a média. Outras variantes raras também foram mais frequentes em Lancashire, Staffordshire e Nottinghamshire. Em Shetland e Orkney algumas variantes causadoras de doenças eram mais de 100 vezes mais frequentes do que a média britânica. Embora os habitantes das ilhas sejam mais frequentemente suscetíveis a doenças raras pela falta de diversidade genética, foram encontradas situações semelhantes em áreas isoladas do continente.

Segundo JFW isso é consequência de um processo de "deriva genética aleatória" que leva a algumas variantes genéticas se tornarem mais comuns e outras se perderem. «Esse efeito é ampliado em pequenas populações com pouco ou nenhum movimento interno de novas pessoas para reabastecer o pool genético», concluiu JFW.

E pronto, não me parece abusivo inferir que uma comunidade fechada onde prevaleça o nativismo tenda a ter cada vez mais nativistas sofrendo de Transtorno do Desenvolvimento Intelectual.

17/10/2024

Não há valores universais. Há os valores ocidentais que apelam à universalidade

Baseado nos World Values Surveys realizados em cada cinco anos que entrevistam dezenas de milhares de pessoas em países de todo o Mundo (130 mil em 90 países no último inquérito), a Economist publicou o ano passado um estudo (*) onde compara os valores predominantes nesses países e a sua evolução entre 1990-98 e 2017-22.

Esses valores são organizados em dois eixos: Tradicional-Secular, onde é avaliada a influência da família e religião e o respeito pela tradição, por um lado, em oposição às crenças não religiosas e ao pensamento mais científico; Sobrevivência-Autoexpressão, onde é avaliado a ligação a um grupo, etnia, nação ou raça, ou seja valores colectivistas, por um lado, em oposição ao individualismo.

Os resultados representados nos diagramas seguintes são muito sugestivos e mostram diferenças notáveis e uma evolução distinta em três décadas, representada nos diagramas seguintes correspondendo os pontos a países individuais.

O primeiro diagrama mostra uma evolução contraditória que esconde a evolução diferente entre as regiões, diferença que os diagramas seguintes confirmam.


Nestes três últimos diagramas torna-se visível que a evolução entre 1990-98 e 2017-22 foi muito diferente nos três conjuntos de países: Língua inglesa/Protestantes que se tornaram mais seculares; Ortodoxos que se tornaram mais tradicionais e Latino Americanos que se tornaram ligeiramente menos tradicionais e menos colectivistas.

No diagrama seguinte representa-se a situação actual de três conjuntos de países em três grandes regiões (os inquéritos não abrangeram os países asiáticos).


E a conclusão é que, no conjunto, os valores dominantes na Europa, que os europeus tomam como valores universais, são completamente distintos dos latino-americanos e africanos-islâmicos que têm em comum um forte tradicionalismo, ainda que partilhem em graus muito diferentes os valores colectistas-individualistas, estando os latino-americanos mais próximos dos europeus a este respeito.

___________

Desde há 20 anos que cito regularmente (por exemplo aqui) os estudos do antropólogo holandês Geert Hofstede que comparou as culturas de dezenas de nações, usando um modelo que considera quatro dimensões na cultura dominante de uma sociedade, entre as quais a dimensão individualismo / colectivismo. Desses estudos resultam conclusões compatíveis com e complementares às retiradas dos World Values Surveys.

27/09/2024

Mitos (341) - O contrário do dogma do aquecimento global (XXXI) - Pero que las hay, las hay

Outros posts desta série

Em retrospectiva: que o debate sobre o aquecimento global, principalmente sobre o papel da intervenção humana, é muito mais um debate ideológico do que um debate científico é algo cada vez mais claro. Que nesse debate as posições tendam a extremar-se entre os defensores do aquecimento global como obra humana – normalmente gente de esquerda – e os outros – normalmente gente de direita – existindo muito pouco espaço para dúvida, ou seja para uma abordagem científica, é apenas uma consequência da deslocação da discussão do campo científico, onde predomina a racionalidade, para o campo ideológico e inevitavelmente político, onde predomina a crença.
______________

A revista Science acabou de publicar um interessante artigo («A 485-million-year history of Earth’s surface temperature») com os resultados de estimativas  por uma equipa de investigadores de universidades americanas e britânicas (Emily J. Judd da universidade do Arizona e seis outros investigadores) das temperaturas médias globais à superfície a partir de mais de 150 mil provas fósseis abrangendo um período de 485 milhões de anos. O estudo revelou que as temperaturas variaram muito mais do que até agora se pensava, como se pode ver no diagrama abaixo, e confirmaram o papel decisivo do dióxido de carbono nas mudanças de temperatura. 
 
[PhanDA designa o método adoptado no estudo para estimar as temperaturas médias globais à superfície
durante o éon Farenozóico que abrange a existência de vida na Terra] 

Não sendo esta a minha praia, remeto os interessados para a leitura do paper e apenas saliento que as conclusões evidenciam a falta de fundamento da tese implícita na dramatização mediática do aumento das temperaturas globais de que os terráqueos desde a Revolução Industrial estão a subverter uma suposta harmonia climática existente num passado idílico. Como confirmam «uma forte correlação entre o dióxido de carbono atmosférico (CO2) e as temperaturas médias globais à superfície, identificando o CO2 como o controlo dominante nas variações no clima global fanerozóico e sugerindo uma sensibilidade aparente do sistema terrestre de ~ 8 ° C» . Como ainda confirmam os aumentos das temperaturas de natureza antropogénica nos últimos 300 mil anos, que contudo não são significativos à escala do Fanerozóico e, segundo Emily J. Judd  em entrevista ao Washington Post, «mesmo nos piores cenários, o aquecimento provocado pelo homem não empurrará a Terra para além dos limites da habitabilidade».

De onde, me permito concluir que se, por um lado o estudo mostra que o histerismo climático não parece ter fundamento, por outro confirma que as mudanças climáticas estão de facto a ocorrer e, ainda que possam não ter as consequências que o histerismo climático trombeteia, têm consequências e seria inteligente fazer o que pudermos para mitigar os seus efeitos.

08/09/2024

Mitos (340) - Da produção de graduados não nasce o desenvolvimento (2) - Vamos todos para o aeroespaço

Continuação de (1)

Seguindo a sugestão de um dos comentários ao post anterior vou fazer um breve escrutínio ao artigo Engenharia Aeroespacial: “As empresas não querem estar à espera dos alunos, estão a instalar-se cá para aceder aos nossos recursos humanos”,  publicado no mesmo jornal na sequência do artigo anterior, com uma entrevista ao director do Departamento de Mecânica da FEUP, entrevista que se destina obviamente a promover o curso de Engenharia Aeroespacial, promoção a que o Expresso se presta con gusto.

Quem lê regularmente e com atenção meia dúzia de jornais, percebe sem dificuldade que um grande número de jornalistas se dedica a este jornalismo promocional que trata as matérias a promover com completa ausência de sentido crítico e rigor, desculpando-se com as boas intenções de promoção do que "está certo" ou "é bom", sobretudo quando ao mesmo tempo se exaltam os supostos feitos dos tugas. 

Por falar em exaltação, temos a série de posts Portugueses no topo do mundo que lhe é dedicada, e acreditamos que emana da síndrome que Eduardo Lourenço descreveu como o estado de «permanente representação, tão obsessivo é neles (os portugueses) o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo».

No seu esforço promocional, o director do Departamento de Mecânica da FEUP «não tem dúvidas de que o espaço pode funcionar como alavanca da economia nacional e destaca alguns números auspiciosos. Temos cerca de 18.500 pessoas já a trabalhar neste ecossistema. Temos verbas geradas de um €1,72 mil milhões. Temos cerca de 30 institutos de investigação e laboratórios de investigação associados a este setor”».

Num país que tinha há três anos 119 observatórios, não ponho em dúvida que o ecossistema aeroespacial tenha 30 institutos de investigação e laboratórios. Ignorando, porém, o que sejam "verbas geradas" e supondo que a criatura se refere ao Valor Acrescentado Bruto (VAB), os €1,72 mil milhões são quase o triplo do VAB da indústria têxtil, mais do que o das telecomunicações e fariam do ecossistema Engenharia Aeroespacial o sector industrial com maior VAB. Se a coisa tem esta dimensão a solução para a economia portuguesa é simples: esqueçamos o calçado, esqueçamos a Auto-Europa e vamos todos para o aeroespaço.

05/09/2024

Mitos (339) - Da produção de graduados não nasce o desenvolvimento

Adaptado do Expresso 

Se admitirmos (uma hipótese talvez ousada) que as notas para admissão no ensino universitário em Portugal traduzem o talento dos candidatos, 250 dos alunos portugueses mais talentosos vão estudar matérias e concluir licenciaturas e mestrados, e talvez doutoramentos, em áreas onde com altíssima probabilidade não vão encontrar colocação profissional em Portugal e, como tantos outros, emigrarão. (*)

É apenas mais um exemplo do que baptizo de teorema Pulido Valente, em homenagem ao Vasco que nos faz tanta falta, que postula que nenhum país se desenvolve à custa de aumentar o número de graduados. Teorema do qual resulta o seguinte corolário:

A produção de graduados favorece o desenvolvimento dos países para onde emigram os graduados provenientes dos países que esperavam desenvolver-se à custa desses graduados.

______________

(*)  Em boa verdade, não é apenas nas áreas mais exóticas que os graduados emigram. Até na prosaica engenharia civil emigram mais de 1/3 dos graduados, segundo o presidente da Ordem dos Engenheiros da Região Sul.

02/08/2024

Mitos (338) - O contrário do dogma do aquecimento global (XXX) - Os factos brutos são o que são

Outros posts desta série

Em retrospectiva: que o debate sobre o aquecimento global, principalmente sobre o papel da intervenção humana, é muito mais um debate ideológico do que um debate científico é algo cada vez mais claro. Que nesse debate as posições tendam a extremar-se entre os defensores do aquecimento global como obra humana – normalmente gente de esquerda – e os outros – normalmente gente de direita – existindo muito pouco espaço para dúvida, ou seja para uma abordagem científica, é apenas uma consequência da deslocação da discussão do campo científico, onde predomina a racionalidade, para o campo ideológico e inevitavelmente político, onde predomina a crença.

No passado dia 22 de Julho as temperaturas médias no planeta bateram um novo recorde desde que o Copernicus as começou a registar em 22 de Julho de 1943.




Os dois gráficos acima ilustram sem qualquer dúvida a tendência para o aquecimento global da atmosfera. É claro que nada nos dizem sobre as causas do aumento das temperaturas médias que podem dever-se ao efeito de estufa das emissões de dióxido de carbono, metano ou outras resultantes da utilização de combustíveis fósseis, dos puns das vaquinhas ou de qualquer outra causa ou de todas em conjunto e da interacção entre elas, ou ao ciclo de Schwabe do Sol, ou a um castigo divino. Em todo o caso, no estado actual da discussão pública deste tema com algumas almas a ainda não se darem conta deste factos, é um bom ponto de partida perceber o que se está a passar antes de se ir aos porquês aos comos.

21/07/2024

A produtividade do trabalho pode aumentar trabalhando-se melhor ou trabalhando-se mais

A maioria das pessoas (que sabem o que é a produtividade) tendem a pensar que a produtividade do trabalho na economia americana é largamente superior à da maioria dos países da União Europeia. O que é verdade quando medimos a produtividade do trabalho em termos nominais, isto é, pelo valor médio por trabalhador da produção de bens e serviços a preços correntes. Se em vez disso, tivemos em conta o poder aquisitivo da moeda nos diferentes países e compararmos o valor médio da produção por trabalhador a preços a paridade do poder de compra (PPP) a produtividade por trabalhador altera-se nalguns casos substancialmente. Se dermos mais um passo e medirmos a produtividade a PPP por hora trabalhada chegamos ainda a outros valores diferentes.

Há uns meses a Economist fez esse exercício e calculou as produtividades segundo esses três diferentes conceitos. Os resultados representados no diagrama mostram algumas coisas interessantes: a produtividade a PPP por hora trabalhada nos EUA desce quatro lugares no ranking revelando que a produtividade americana se deve em parte a simplesmente trabalharem mais horas; a produtividade asiática (Japão e Coreia do Sul) depende ainda mais das horas de trabalho; a maioria dos países europeus mais desenvolvidos sobe no ranking da produtividade por hora.

Quanto ao Portugal dos Pequeninos, a produtividade medida em qualquer dos conceitos é fraca mas a produtividade total poderia aumentar se trabalhássemos mais horas, ou seja, se fizéssemos o contrário do que o pensamento económico milagroso nos está a sugerir que façamos: a semana dos quatro dias.

20/07/2024

Consequências imprevistas das boas intenções de que o inferno está cheio ou não há almoços grátis


A partir do próximo ano entrará em vigor na UE uma regulamentação que obrigará os importadores de cacau, café, borracha, soja, óleo de palma, madeira ou produtos de gado a provar que esses produtos não têm origem em terras que foram desflorestadas depois de 2020. Um importador incumpridor terá uma multa que pode ir até 4% do seu volume de negócios na UE. Para cumprir essa regulamentação milhões de pequenas fazendas terão de ser geolocalizadas e as cadeias de fornecimento terão ser ser adaptadas desde a América Latina à Ásia, passando por África onde isso será especialmente difícil de realizar. Tudo indica que não haverá tempo até ao fim do ano, o que terá um impacto profundo sobre os pequenos produtores e as economias dos países para quem as exportações desses produtos são vitais. (fonte)

Para fabricar um veículo de combustíveis fósseis são precisos 30 kg de cobre e peróxido de manganês. Para fabricar um veículo elétrico são necessários 200 kg de minérios raros, incluindo grafite e cobre. Só a quantidade de sílica para fabricar painéis solares é maior por unidade de energia do que todos os minérios necessários para produzir energia usando carvão. A maior parte dos minerais necessários para os equipamentos de produção de energias renováveis não se encontra na UE nem nos EUA e concentra-se em países como a República Democrática do Congo (70% da produção de cobalto), Brasil (90% do nióbio) ou a China (80% ou mais do gálio, germânio, volfrâmio, telúrio e bismuto), China que controla uma parte significativa da indústria mineira africana. E quando esses minerais se encontram na UE a sua extracção está sujeita a tantas restrições  que são necessários anos para abrir novas minas. Estamos a trocar a dependência da Rússia, Arábia Saudita e de outros produtores de petróleo, na sua maioria Estados autocráticos, pela dependência dos minerais necessários à "economia verde" existentes em outros ou nos mesmos Estados autocráticos. (fonte)

Estes são dois exemplos das consequências imprevistas e indesejadas de políticas e medidas inspiradas pelas boas intenções (algumas delas eventualmente incontornáveis a longo prazo) que são adoptadas com base no lunatismo e no pensamento milagroso do qual podem resultar consequências evitáveis e o agravamento das inevitáveis, ignorando o trade-off entre medidas alternativas e prioridades.

12/06/2024

How Working Class Americans Became Second-Class Citizens

Amazon
«Americans are constantly told we are hopelessly divided, and it’s easy to see why many of us could believe it: our politicians relentlessly accuse the other side of undermining democracy and endangering the vulnerable, while our legacy media, which no longer even pretends to be objective, consistently portrays its side’s enemies in the starkest of terms.

People on the right are “racist,” says the left. People on the left are “groomers,” says the right. And so on.

But what if I told you that the people in the political and media classes are the ones who are polarized—in fact, they are the only ones who are so polarized?

This is obvious to most Americans, even—perhaps especially—to those who have neighbors or friends or colleagues who vote differently than they do. Regular Americans know we are more united than divided on the issues that are supposedly tearing us apart.

Democrats portray conservatives as characters out of The Handmaid’s Tale, and Republicans portray liberals as “baby killers.” Yet two-thirds of Americans agree that abortion should be rare and also legal.

Democrats like to tell us that Republicans are gung ho on school shootings, and Republicans are fond of saying Democrats want to steal our guns. Yet 61 percent of us believe that the Second Amendment should stand, but it’s too easy to get a gun. 

Democrats tell us Republicans hate gays and Republicans tell us that Democrats want every child to be queer. Yet average Americans believe that sex is determined at birth and that trans people should be protected from discrimination, though when it comes to sports, trans people should compete on teams that match the sex they were born with. This is how six in ten of us feel. 

The partisan claims of a polarized America ring especially false to working-class Americans. This is because—unlike the college-educated elites who run the country—they don’t identify with the full list of policy proposals produced by either party. 

I spent one year interviewing working-class Americans across the country from every political persuasion for my new book, Second Class: How the Elites Betrayed America’s Working Men and Women, and what I found was a remarkable consensus on the issues.»

Batya Ungar-Sargon (The Free Press)

31/05/2024

A Inteligência Artificial ao serviço da manipulação da Ignorância Natural e da Estupidez Natural

«Na década de 1980, a KGB tinha um método bem estabelecido para espalhar desinformação em todo o mundo. "Preferimos trabalhar em documentos genuínos", lembrou Oleg Kalugin, ex-general da KGB, "com algumas adições e mudanças". Esse método não mudou muito, mas a tecnologia acelerou o processo. No início de Março, uma rede de sites, chamada CopyCop, começou a publicar histórias em inglês e francês sobre uma série de questões controversas. Eles acusaram Israel de crimes de guerra, amplificaram debates políticos controversos nos Estados Unidos sobre reparações da escravatura e imigração e espalharam histórias absurdas sobre mercenários polacos na Ucrânia.

Isso não é incomum para a propaganda russa. A novidade era que as histórias haviam sido retiradas de veículos legítimos de notícias e modificadas usando grandes modelos de linguagem, provavelmente um construído pela Openai, a empresa americana que opera o ChatGPT. Uma investigação publicada em 9 de Maio pela Recorded Future, uma empresa de informação sobre ameaças, descobriu que os artigos tinham sido traduzidos e editados para adicionar um viés partidário. Em alguns casos, o prompt – a instrução para o modelo de IA – ainda estava visível. Não foram subtis. Mais de 90 artigos franceses, por exemplo, foram alterados com a seguinte instrução em inglês: "Por favor, reescreva este artigo adoptando uma postura conservadora contra as políticas liberais do governo Macron em favor dos cidadãos franceses da classe trabalhadora".

Outro texto reescrito incluiu evidências de sua inclinação: "É importante notar que este artigo foi escrito com o contexto fornecido pelo prompt de texto. Ele destaca o tom cínico em relação ao governo dos EUA, à NATO e aos políticos americanos. Também enfatiza a percepção de republicanos, Trump, DeSantis, Rússia e RFK Jr como figuras positivas, enquanto democratas, Biden, a guerra na Ucrânia, grandes corporações e grandes farmacêuticas são retratados negativamente.

A Recorded Future diz que a rede tem ligações com a DC Weekly, uma plataforma de desinformação gerida por John Mark Dougan, um cidadão americano que fugiu para a Rússia em 2016. A CopyCop publicou mais de 19.000 artigos em 11 sites até o final de março de 2024, muitos deles provavelmente produzidos e publicados automaticamente. Nas últimas semanas, a rede "começou a angariar engajamento significativo ao publicar conteúdo direccionado e produzido por humanos", acrescenta. Uma dessas histórias – uma afirmação rebuscada de que Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, havia comprado a casa do rei Charles em Highgrove, no Gloucestershire – foi vista 250 mil vezes em 24 horas e depois circulou pela embaixada da Rússia na África do Sul.

É improvável que esses esforços grosseiros convençam os leitores mais exigentes. E é fácil exagerar o impacto da desinformação estrangeira. Mas as falsificações habilitadas por IA ainda estão na sua infância e provavelmente melhorarão consideravelmente. Esforços futuros são menos propensos a divulgar os seus prompts incriminadores. "Estamos vendo todos os actores e grandes grupos cibernéticos a usar os recursos de IA", observou Rob Joyce, até recentemente director de segurança cibernética da Agência de Segurança Nacional, o serviço de informação de comunicações electrónicas dos Estados Unidos, em 8 de Maio. Em suas memórias, Kalugin gabou-se de que a KGB publicou quase 5.000 artigos em jornais estrangeiros e soviéticos apenas em 1981. Para o propagandista moderno, esses são números de principiantes.» 

A Russia-linked network uses AI to rewrite real news stories