A D. Branca e os “ultra-liberais”
Em 1983 rebentou um esquema fraudulento, em pirâmide, de uma velha senhora portuguesa, D. Branca, que há décadas remunerava com altos juros os 'depósitos', usando os capitais que iam entrando (como fez Madoff nos Estados Unidos, numa outra escala, naturalmente). Na altura formaram-se longas filas de 'clientes' à porta da organização. A RTP mostrou, então, vários desses frustrados 'depositantes' a reclamarem violentamente e a exigirem uma intervenção do governo para não perderem o seu dinheiro.
Este episódio ficou-me na memória porque ilustra a peculiar relação dos portugueses com o Estado. Nós somos tão viscera1mente dependentes do Estado que até lhe pedimos protecção contra os prejuízos de um negócio totalmente ilegal, como era o da D. Branca.
Por isso, quando agora alguém propõe algo menos estatizante - digamos, o memorando da troika ou o programa do PSD -, logo se levanta um clamor de indignação contra o que é classificado de ultra-liberal. E muita gente fica aterrada com a hipótese de qualquer diminuição do paternalismo estatal.
Ora, temos Estado a mais desde há séculos. A aristocracia portuguesa nunca teve poder económico face à Coroa, de cujos favores dependia. A maior parte da débil burguesia da monarquia constitucional era constituída por funcionários públicos e assim continuou depois de 1910. Sob a capa do corporativismo, Salazar alargou o domínio do Estado, nomeadamente sobre a actividade económica. O condicionamento industrial, que só acabou depois do 25 de Abril, fazia depender a maioria dos investimentos fabris de prévia autorização estatal, visando evitar o aparecimento de unidades industriais em concorrência.
Poucos povos detestam mais a concorrência, a livre iniciativa, o risco empresarial, do que os portugueses. Os próprios empresários, com algumas excepções, encostam-se ao Estado para ganharem dinheiro, gerando promiscuidade entre poder político e negócios privados. Há Estado a mais na burocracia que tudo trava e que incentiva a corrupção. E o mercado muitas vezes não funciona entre nós, ou funciona mal, porque as autoridades de regulação não conseguem assegurar uma verdadeira concorrência, que deveria ser a primeira linha na defesa do consumidor.
Aí está: também temos Estado a menos onde ele seria mais necessário. Falta autoridade democrática às instituições políticas. Lucram os lóbis e as várias corporações, que colonizam o aparelho estatal e o multiplicam num autêntico Estado paralelo (fundações, institutos, empresas municipais, etc.). Também a justiça funciona pessimamente. É atribuída uma baixa prioridade aos recursos destinados às forças policiais e de segurança. O mesmo acontece com as Forças Armadas:
Falta Estado na enorme quantidade de leis que se publicam e depois não são regulamentadas; ou, mesmo regulamentadas, não são aplicadas na prática. É o caso das muitas regras ambientais e de ordenamento do território, que são sistematicamente violadas pelas próprias autoridades autárquicas, para permitirem a construção desenfreada e assim obterem receitas à custa de desfigurarem o país.
Curiosamente, os que se mostram tão alarmados com a alegada vaga neo-ultra-liberal não parecem preocupados com estas 'falhas de Estado' (apenas reparam nas falhas de mercado). Não percebem que a fraqueza do nosso Estado é um dos mais relevantes factores que geram injustiça social. Os ricos e poderosos sempre arranjam maneira de se defenderem contra a lentidão e as incertezas da justiça; ou quanto às falhas na segurança das pessoas face a uma criminalidade cada vez mais violenta. Mas os pobres…
Claro que é politicamente difícil reordenar as prioridades do Estado. Logo chovem as acusações de ultraliberalismo - que, por mais absurdas que sejam, assustam quem vive directa ou indirectamente à mesa do Orçamento. E muitos empresários receiam o fim do conúbio com o Estado, base dos seus negócios. Mas, sem uma séria reforma do Estado, a economia portuguesa não sairá do marasmo.
Francisco Sarsfield Cabral (publicado no jornal Sol de 20-05-2010)
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Lema: A verdade é como o azeite, precisa de um pouco de vinagre.
Pensamento em curso: «Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.» (António Alçada Baptista, em carta a Marcelo Caetano)
The Second Coming: «The best lack all conviction, while the worst; Are full of passionate intensity» (W. B. Yeats)
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Pensamento em curso: «Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.» (António Alçada Baptista, em carta a Marcelo Caetano)
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22/05/2011
DEIXAR DE DAR GRAXA PARA MUDAR DE VIDA: Servidores do Estado e sujeitos passivos
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