Uma espécie de conto em fascículos, a pretexto do misterioso caso do Angoche há 45 anos, sobre a aventura de Ulisses Trinta e Quatro a bordo do dito Angoche. O autor APS, de quem já aqui publicámos há dez anos os «Contributos para a Teoria Geral do Prego» é um dos detractores mais impertinentes do (Im)pertinências.
48. Leviatã [continuação de (1)]
O mal dos dias especiais é não serem capazes de dar a perceber essa sua inusitada faceta, ou seja, ninguém, pelo andar da carruagem do quotidiano, se atreveria a dizer que são diferentes pois à priori não se distinguem dos que governam o nosso continuo rame-rame. Num desses malfadados dias o Angoche arribou, após ter sido dado como operacional, à sua área geográfica de exploração, atracando no cais da capital da província, pela manhã para proceder à transferência das cargas do porão para o cais e, depois outras cargas, do cais para o porão, pois, mesmo não sendo navio de longo curso, viera carregadinho do porto de construção e origem, apesar de a cabotagem ser a essencial e simples razão de ser do navio, e também, no fundo, de outro qualquer a menos que não seja cargueiro caso em que a simplicidade essencial poder passar à tão desagradável quanto o é a guerra ou tão amável quanto o turismo de cruzeiro. Pelo fim da tarde deveria desamarrar o navio e rumar ao porto seguinte, para proceder, exactamente ao mesmo trabalho. Chegaria nesta azáfama até ao norte da província juntinho à fronteira e depois virava para baixo navegando até ao sul também bem próximo da fronteira, aliás de onde partira.
Como imediato não era suposto estar ao portaló na supervisão e vigilância das operações de carga e descarga mas, como se deduz da comparação entre a tripulação prevista no registo e a efectiva careciam-se de recursos e não havia remédio senão o vice chefe máximo no navio envolver-se em tarefas que a importância da função não recomendava, todavia a contabilidade da economia da exploração falava mais alto e por isso mesmo o homem estava ao portaló quando devia estar na câmara e por esse real e improvável motivo não houve a oportunidade de introduzir entre ele e um cidadão que a ele se dirigiu, o peso da hierarquia, de resto neste caso exemplarmente reduzida, na garantia da triagem e selectividade ao seu acesso,
O cidadão em causa identificou-se sob o nome de Ulisses Trinta e Quatro e pretendia falar com o comandante do navio sem, todavia, perceber que estava exactamente a falar com o imediato, ou seja, quase o pretendido e eventual interlocutor. Por outras palavras, o senhor Ulisses não entendia patavina do que os galões significavam e um óculo com uma, duas, três ou trinta barras tinham exactamente o mesmo significado: nenhum, para ser exacto. Por este pequeno detalhe se percebe quanto justas foram as considerações expressas sobre os trabalhos a que um imediato, não fora a questão espúria da contabilidade, se deve dedicar ou não.
Como era novato nas artes do modo de conviver com os indígenas e divertido com o nome do cidadão, não resistiu, o imediato, a informar o estranho de que estava perante a pessoa que pretendia contactar facto que podia constatar pelos galões que transportada aos ombros e se não for pedir demais importar-se-ia o cidadão Ulisses dizer ao que vinha e que importância isso tinha para implicar uma conversa logo com o comandante.
A disponibilidade mereceu de Ulisses um sorriso franco, imensamente empático e contagiante. O dito cidadão pretendia viajar até ao norte onde tinha família que fazia muito tempo não via e carecia de ser ajudada. Como não tinha dinheiro para pagar a viagem nem para ajudar a família trabalharia no navio em tudo o que sabia fazer e em tudo o que fosse preciso mesmo não sabendo muito bem, ganhando aquilo que o comandante entendesse que deveria ganhar.
(Continua)
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