15/09/2019

Encalhados numa ruga do contínuo espaço-tempo (89) - Um regime que se sente ameaçado pelos mortos é um regime zombie

«Convenhamos que estas fantasmagorias em torno de Salazar já cansam. Com a democracia quase a cumprir o número mágico dos 48 anos contabilizados pelo Estado Novo, esperava-se que o regime democrático se tivesse libertado de Salazar, que este fosse um capítulo fechado da História e não um antagonista sempre presente, apesar de morto há largas décadas, e de o seu projecto político ser circunscrito a um tempo. (...)

Esperava-se ainda mais que o regime democrático tivesse um discurso sobre si mesmo, os seus sucessos e falhanços, sem precisar da muleta do anti-salazarismo. (Note-se que nesse aspecto o Estado Novo foi muito mais rápido a deixar de invocar os desmandos da I República como fonte para a sua legitimação, centrando-se na sua própria obra.) Mas curiosamente não só isso não aconteceu como, das marchas populares às noivas de Santo António, quanto mais o país é dominado pela esquerda mais se regressa ao imaginário criado durante o Estado Novo. Nos debates e nas polémicas invoca-se o salazarento, o fascismo e o país “cinzento e triste”. Depois troca-se de roupa e vai-se para o parque da Bela Vista cantar essa espécie de hino do Portugal salazarista, o “Que saudades eu já tinha/Da minha alegre casinha/ Tão modesta como eu”, devidamente coreografados pelo presidente da República, primeiro ministro, presidente da Assembleia da República, a líder de extrema-esquerda Catarina Martins e o presidente da CML.

Com o regime democrático quase fazer 48 anos, os líderes da democracia portuguesa têm de ter projectos para o futuro e deixar de se esconder no passado

«O lugar do morto», Helena Matos no Observador

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