«Hoje em dia, as pessoas bem formadas têm os sentidos muito apurados para variadíssimas formas de discriminação. Os adeptos mais fervorosos do feminismo vigiam cadernos de actividades para meninos e meninas. Os combatentes mais empenhados contra o racismo histórico vigiam estátuas opressoras. Os activistas mais radicalizados do grupo LGBTQQIA+ vigiam o uso de pronomes. Os apoiantes mais apaixonados dos direitos dos animais vigiam provérbios com referências a bicharada.
Confesso que, embora sendo contra o machismo, contra o racismo, contra a homofobia e contra os maus-tratos a animais, o meu palato não consegue destrinçar certas subtilezas discriminatórias. Ele consegue, contudo, captar um outro tipo de discriminação, à qual sou bastante sensível, certamente por ter nascido no interior de Portugal e continuar a cultivar lastimáveis hábitos de matarruano: o classismo, ou classicismo (os dicionários admitem as duas formulações), que pode ser definido como a discriminação baseada na classe social.
Tristemente, já foi uma discriminação popular, mas está desvalorizada nos dias que correm. É uma pena, porque eu vejo manifestações dela todos os dias – incluindo por parte das mesmas pessoas que sendo muito sensíveis ao machismo, ao racismo, à homofobia ou aos direitos dos animais, são muito pouco sensíveis às mais variadas aparições de classismo, com certeza por estar nelas tão entranhado (reparem como estou maldosamente a usar o argumento favorito de todas as minorias envolvidas em lutas pela justiça social) que nem se apercebem quando o praticam.
As algemas com que Armando Vara se apresentou em tribunal na semana passada são um bom exemplo do que estou a falar. Muita gente manifestou-se contra aquelas imagens, considerando-as uma humilhação desnecessária. E alguns nem sequer nutrem qualquer simpatia em relação a Vara – acham simplesmente que aquilo não se faz. É aqui que o meu nariz anticlassista começa a sinalizar o cheiro a esturro. Nós já vimos dezenas, centenas de imagens de gente algemada a chegar a um tribunal – porque é que só nos indignamos com Armando Vara? Não é ele um cidadão como qualquer outro?»
Excerto de «As algemas de Armando Vara», João Miguel Tavares no Público
Pode-se não ser nem matarruano, nem classicista: amante do que é 'clássico'.
ResponderEliminarMas pode-se ser apurado analista do reles povo que por aí anda: isto sim, é classismo.
Mesmo quando o povo concatena a malta na 'melhor geração de sempre'. Pelo menos na arte de palmar (veja-se palmeira no dicionário, sem futebol).