14/11/2005

AVALIAÇÃO CONTÍNUA: SuperMário é um blogue de cromos

Secção Padre Anchieta
«Quando Soares ontem disse, no contexto de uma questão sobre a universidade de Coimbra, que era o «anti-Salazar», melhor teria sido dizer (ou era isso que estava nas entrelinhas) que era o «anti-Cavaco». Por um lado, porque esta construção da personagem de Cavaco - o anti-politicismo, o messianismo, a desconfiança perante os mecanismos essencialmente liberais de debate (no parlamento, no espaço público, etc.) - é na essência uma herança da memória de Salazar (cuja marca na nossa memória política não é propriamente pequena). Mas, por outro lado, Soares é, na circunstância presente, o anti-Cavaco no sentido em que se apresenta não como a solução para a crise, mas como um elemento de continuidade numa solução já existente.»
O parágrafo anterior faz parte de post levemente delirante do Ivan do SuperMário (blogue não oficial de apoio à candidatura de Mário Soares à reforma compulsiva).

Será preciso recordar que Salazar foi saudado pela esmagadora maioria dos que viveram a baderna republicana, entre 1910 e 1926, como um cirurgião que limpou a gangrena que corroía o tecido social e um contabilista que sabia fazer contas e pôs ordem no peditório das migalhas do orçamento? Que o fez impondo uma ditadura meio bafienta, não foi visto como um problema, pelo menos até ao fim da guerra, em 1945. Parecia mais um mal menor e necessário, comparado com o clima político-social que se vivia nessa altura na Europa continental, de Vilar Formoso até Vladivostoque. A oposição ao Botas limitava-se ao PC e a uma folclórica sucessão de conspirações falhadas em que a oposição republicana (a que, recorde-se, pertencia o doutor Soares) se embrulhava regularmente. O povo, esse, tratava da vidinha e via o Botas como um seguro contra devaneios, loucuras e assaltos à mesa do orçamento. O regime fassista mostrava contenção onde outros mostravam holocaustos e gulagues. E a coisa foi assim até ao início da guerra colonial. A partir daí e até à queda da cadeira e posterior passamento, o doutor Salazar foi de facto pouco apreciado pelas gerações que chegaram à idade da razão entre 1961 e 1968 e perceberam que iriam talvez morrer pela pátria do doutor Salazar, ainda que em quantidades relativamente moderadas face às que a baderna republicana tinha incompetentemente sacrificado na 1ª guerra - só na batalha de La Lys morreu o equivalente a mais de metade das baixas mortais na guerra colonial que durou 13 anos (7.000 e 12.000 respectivamente).

Para todos os que chegaram a idade da razão depois de 1974, o doutor Salazar, o Botas, é um cromo dinossáurico de que alguns dos cromos seus pais se queixavam nos intervalos de se queixarem do custo de vida que não lhes permitia comprar o ansiado plasma. Tudo por junto, deve haver uns 5% dos eleitores que se podem inflamar com as boutades do doutor Soares e mais 0,1% que se sentirão transportados pelos delírios do Ivan. Mesmo esta insignificância, no lugar do Ivan, eu não a consideraria como garantida, porque até a minha prima Violinda percebe que se há alguém «que se apresenta não como a solução para a crise, mas como um elemento de continuidade numa solução já existente» só pode ser o doutor Soares, que se vencesse as eleições seria o presidente de todos os situacionistas, 32 anos depois do almirante Tomás.

Por tudo isto, e ainda por outras imensas coisas que escreveria se tivesse pachorra e tempo, daqui manifesto a minha solidariedade com o doutor Soares, desejando-lhe uma tão longa vida quanto a que o meu pai já atingiu, junto com 5 bourbons para premiar a sua pertinácia nas receitas do costume. Para o Ivan reservo, também, votos duma tão longa vida quanto a minha (pelo menos) e dedico-lhe 5 sinceros chateaubriands.

Post (scriptum) de alembrança:
A secção Padre Anchieta está assim descrita no Glossário das Impertinências:

O padre José Anchieta, linguista e evangelizador de índios do Brasil, fez imensas coisas, inclusive este poema, que não interessa nada para o caso, mas que cai bem citar no blogue:
Vi-me agora num espelho
e comecei de dizer:
Corcós, toma bom conselho
Porque cedo hás de morrer.
Mas, com justamente ver
o beiço um pouco vermelho
Disse: fraco estás e velho
Mas pode ser que Deus quer
Que vivas, para conselho
O importante para esta secção é a lenda. Corria o ano de 1554, num certo dia, numa breve parada, após longa, acelerada e extenuante caminhada para Reritiba à frente dos Tupis que lhe carregavam as trouxas, o Padre Anchieta deu-se conta que os índios, sentados sobre as suas tralhas se recusavam a recomeçar. Perguntando-lhes o porquê, explicaram-se os Tupis, com grande soma de pachorra, que na rapidez da caminhada a alma lhes tinha ficado para trás e tinham precisão de esperar por ela.

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