12/03/2005

NÓS VISTOS POR ELES: O escarro anatómico

Depois de Nadim Habib, prossegue a saga do Nós vistos por eles com o romancista alemão Alfred Doeblin («Berlin Alexandreplatz»).

O maradona de A Causa Foi Modificada, evoca o rigor cirúrgico de Alfred Doeblin a descrever o escarro anatómico, inspirado na visão durante a sua passagem por Lisboa em 1940.

«Lisboa pratica a espécie mais horrível de escarro, o escarro anatómico. Que começa por um aclarar da garganta, um expectorar, um acumular nas partes superiores da cavidade nasal, após o que se desencadeia o trabalho propriamente dito, que baixa às profundezas, como que um labor mineiro, uma cuidadosa, circunspecta dragagem, bombagem, sucção da descarga a partir de todas as esquinas do palato, da faringe, da cavidade nasal posterior, de toda a casta de cavernas acessórias do nariz. Conforme o ponto de aplicação, assim a tarefa é acompanhada de um crocitar, um estertorar, um esganar. Por fim, tudo aquilo termina em explosões, na expulsão do património tão esforçadamente acumulado. Há que ter cautela quando ocorre a descarga propriamente dita. O disparo pode borrifar-nos a cara ou apontar aos nossos pés. Tudo aquilo é de horror, mas, conforme disse, prática comum.»

[Alfred Doeblin, "Viagem ao Destino", Edições ASA - via maradona]

O Impertinências, que é quase contemporâneo da passagem de Doeblin por Lisboa, poderia prestar testemunho das inúmeras vezes em que correu riscos de ser atingido pelas descargas disparadas nas ruas de Lisboa em todas as direcções pelos populares alfacinhas. Só uma coluna flexível sem escolioses, como era a do Impertinências nessa época, lhe permitiu ser poupado.

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