19/05/2024

Há vários Portugais no Portugal dos Pequeninos. Aparentemente próximos, estão muito afastados

No dia 24 de Abril o Expresso publicou vários artigos de opinião sobre as mudanças que o novo regime introduziu em Portugal. Dois desses artigos foram sobre o sistema educativo e, possivelmente não por coincidência, publicados na mesma página por dois comentadores, um conotado com a esquerda bem-pensante (Luís Aguiar-Conraria) e outro de direita fora da caixa (Henrique Raposo). Como notou Ortega y Gasset, os eus e as circunstâncias são inseparáveis, e por isso convirá recordar que o primeiro comentador faz parte das elites nascidas nos sítios certos (o hífen está lá para confirmar) e estrangeiradas (doutorou-se em Economia em Cornell, USA) e é professor da universidade do Minho; o segundo faz parte das elites nascidas no sítios errados, tem um mestrado em ciência política, é jornalista, escritor e, apesar de viajado, não é de todo um estrangeirado.

Por isso, as visões de ambos são, mais do que diferentes, antagónicas, o que desde logo é visível nos títulos dos artigos, «Cinquenta anos depois, estamos preparados» e «O grande fracasso».

Aguiar-Conraria, mostrando que é da facção bem-pensante, não pinta em cores demasiado escuras o ensino do Estado Novo, vê as mudanças educacionais das últimas cinco décadas como enormes progressos, sobretudo no ensino universitário, festeja os 3l,5% da população activa com um grau superior e o facto de na faixa etária 20-34 anos estarmos acima da média europeia de licenciados. Reconhece como único handicap a percentagem da população activa com o ensino secundário completo não atingir 60% em Portugal - passa-lhe ao lado o facto desta percentagem ser baixa porque a dos licenciados é excessiva para um país com uma economia pouco sofisticada. Aguiar-Conraria revela-se assim como mais um adepto de uma das crenças mais populares em Portugal - a de que o ensino por si promove o desenvolvimento - que tem imensos seguidores e, que me lembre, apenas o falecido Vasco Pulido Valente foi um notório detractor público.  

Contrariamente, Henrique Raposo não vê essas mudanças como milagrosas, passa ao lado dos sucessos universitários, e denuncia as profundas desigualdades entre as escolas dos privilegiados da Foz e da Linha e as do morro onde ele viveu e aponta o dedo às Excelências («os leitores do Expresso e dos jornais de referência, a classe média e alta»), que mantiveram «as bolsas de pobreza e exclusão de um país assimétrico e estático do ponto de vista social» situação que resulta de falhas da esquerda («o seu dogmatismo só contempla este sistema de escola pública») e da direita («nunca pensou a sério a escola pública, fechando-se a si mesma nos colégios privados»).

Aguiar-Conraria e Henrique Raposo não descrevem dois países diferentes, descrevem o mesmo a partir de duas visões forjadas em circunstâncias de vida radicalmente diferentes, uma mais fruto do pensamento milagroso do esperma sortudo, como lhe chamou Warren Buffett, de quem teve lugar cativo no elevador, lugar que atribui ao seu talento, e outra visão mais crua e realista, por vezes ressabiada, de quem teve de subir as escadas a pé. E isto, só por si, revela uma das grandes falhas do novo regime (maior talvez do que a do Estado Novo), a incapacidade de usar o sistema educativo para diminuir a diferença de oportunidades entre os sítios certos e os sítios errados para se nascer.

1 comentário:

  1. Eu acho que a esquerda é que está fechada nos colégios privados, pelo menos os filhos da esquerda com certeza estão.

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