O texto seguinte de Luís Cabral, um economista e professor na Universidade de NY que escreve regularmente no Expresso ao arrepio do pensamento socialista dominante no semanário, questiona o núcleo das premissas da vulgata da desigualdade de inspiração marxista tardia que nos últimos anos está a servir de sustentação "científica" para o retorno do Estado intervencionista.
«Não é novidade para ninguém que o nível de desigualdade em muitas economias desenvolvidas é elevado e tem subido em anos recentes. Por exemplo, nos Estados Unidos, o top 1 por cento dos mais ricos recebia cerca de 10 por cento do rendimento nacional nos anos 70. Hoje, esse valor duplicou para cerca de 20 por cento. Em Portugal, apesar de tudo temos um valor inferior, cerca de 8 por cento. No Chile, cerca de 23 por cento. No Brasil, 28 por cento! (Neste contexto, o que admira não são os protestos em Santiago, o que realmente admira é a falta de mais protestos em São Paulo e no Rio.)
Qual é a raiz destas desigualdades? Como é evidente, há mais do que uma causa, e a importância relativa de cada causa varia de país para país e de ano para ano. No que segue, refiro-me principalmente ao caso dos Estados Unidos, por dois motivos. Primeiro, existem mais dados e mais estudos sobre a economia americana. Segundo, para os presentes efeitos o que se tem passado nos Estados Unidos é mais relevante para Portugal do que o que se tem passado no Brasil ou no Chile.
Há alguns anos, no livro "Capital no Século XXI", o economista francês Thomas Piketty propôs uma teoria para a concentração no top 1 por cento: Os donos do capital veem a sua riqueza (e o seu rendimento) crescer à taxa de juro. Os trabalhadores, pelo contrário, só ganham mais quando a economia cresce. Ora, a taxa de juro tem sido superior à taxa de crescimento da economia, e para os mais ricos os rendimentos do capital são mais importantes do que os rendimentos do trabalho. Logo, na corrida entre capital e trabalho ganha o capital, e na corrida entre ricos e pobres ganham os ricos.
Esta teoria e a sua aplicação têm muitos problemas, dos quais destaco os seguintes: Primeiro, nos últimos anos a taxa de juro tem sido inferior à taxa de crescimento da economia e isso não impediu que os índices de desigualdade tenham aumentado.
Segundo e mais importante e mais surpreendente-, a premissa de que os rendimentos do capital são relativamente mais importantes para o top 1 por cento não bate certo com os dados. Há alguns anos, revendo o recém-publicado livro de Piketty, escrevi aqui sobre este ponto: a maior parte dos ricos são ricos por causa dos rendimentos do trabalho, não por serem capitalistas. Há alguns meses, um estudo de Smith, Yagan, Zidar e Zwick ("Capitalists in the Twenty-First Century") vem confirmar esta expectativa.
Suponhamos, por exemplo, que o Sr. Silva, advogado, decide por motivos fiscais criar uma empresa de advogados. A empresa não tem muito capital físico: apenas uma sala num edifício de escritórios e um computador portátil. No entanto, a empresa é altamente lucrativa, e os proveitos são totalmente distribuídos ao Sr. Silva. Para efeitos de contabilidade nacional estes rendimentos do Sr. Silva são classificados como rendimentos de capital. No entanto, o bom senso mostra que claramente são rendimentos do trabalho, o trabalho do Sr. Silva. Aliás, a evidência mostra que, quando o Sr. Silva morre, o valor da empresa cai drasticamente. Fazendo esta correcção aos dados do Bureau of Labor Statistics, Smith et. al. mostram que os rendimentos do trabalho são relativamente mais importantes para o top 1 por cento do que para o resto da população (embora a diferença seja pequena). Logo, por mais que Thomas Piketty insista que Marx tinha razão e que é tudo uma questão de luta entre capitalistas e trabalhadores, o que está em causa é o enorme abismo entre trabalhadores com níveis de qualificação diferentes.
Esta distinção é importante ao contemplar soluções para o problema da desigualdade nas economias desenvolvidas. Para os trabalhadores de baixos níveis de qualificação que tenham potencial, temos de criar condições para que possam adquirir as qualificações que lhes faltam (educação como factor de mobilidade). Para os que não tenham qualificações nem a capacidade para as adquirir, temos de criar condições (solidariedade) para que possam viver dignamente numa sociedade em que o progresso técnico não para.»
CAPITAL, TRABALHO E DESIGUALDADE, Luís Cabral no Expresso
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