10/12/2016

DEIXAR DE DAR GRAXA PARA MUDAR DE VIDA: O Portugal dos Pequeninos visto pelo último dos queirozianos (20)

Outros excertos.

Termina, por agora, esta série com este excerto em tom confessional de outra das crónicas, compiladas em «De mal a pior» (D. Quixote), de Vasco Pulido Valente, o último dos queirozianos, não no estilo mas na substância, com a sua visão lúcida, por vezes vitriólica, deste Portugal de mentes pequeninas e elites medíocres.

«Nunca perdi a memória ou os sinais desse princípio, que foi, por assim dizer, a minha introdução ao mundo. A guerra fria veio complicar as coisas. Em Portugal, a existência da ditadura impunha, na prática, a escolha de um único lado. Não se podia ser contra os comunistas pela razão primitiva e óbvia de que o regime perseguia e prendia os comunistas. Não houve ninguém, ou quase ninguém, com um resto de consciência moral, que, numa altura ou noutra, não caísse neste buraco: o buraco sem fundo do "antifascismo". Sair dele era mais difícil e muitos só saíram muito depois do 25 de Abril. Por mim, gastei esforçadamente uma dúzia de anos no trabalho inglório de varrer a tralha política e teórica da minha cabeça. É uma parte da minha vida que se estragou e que não volta. Sou um filho da guerra fria.

A democracia portuguesa trouxe uma exagerada esperança de reforma e decência. Ao começo, mesmo a seguir ao PREC, nada parecia impedir que se fizesse um país sem a miséria, a corrupção e a complacência do costume. Por isto e por aquilo, não se fez. Portugal conservou os seus velhos vícios, sem adquirir novas virtudes. Na minha última encarnação sou, prosaicamente, um filho da democracia falhada. Como escreveu o homem, a velhice é um naufrágio. Comigo, um naufrágio que às vezes não acho exclusivamente pessoal. Mas são com certeza momentos de megalomania. A verdade é que já não pertenço a esta história. O meu interesse é forçado, a minha presença é, pelo menos para mim, gratuita. Mas, por enquanto, não há remédio senão persistir.

Histórias, 21-04-2007

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