«Se alguém quisesse acusar os Portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. Na perspectiva de então havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime.
Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro, do general Spínola, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada, ordenada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas. Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar.
Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães de u início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural gue os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários». E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do Exército para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram conscientemente a cade ia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram puramente criminosas.
Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve. O outro problema era o da liquidação do regime deposto.»
«O 25 de Abril e a História», capítulo de «Filhos de Saturno», de António José Saraiva (publicado originalmente no Diário de Notícias de 26-01-1979)
(Continua)
Continuo a achar muito bem, didático, a vossa divulgação de António José Saraiva. Um homem de esquerda Honesto. Uma das excepções que justifica a regra.
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