12/01/2016

Pro memoria (285) – O Estado, esse Moloch. Ontem, como anteontem, e hoje como ontem (2/2)

«A mentalidade não mudou. É a que se habituou a viver irresponsavelmente, não da iniciativa e da actividade próprias, mas das benesses do Estado-Providência, e a não estabelecer relação entre o que se produz e o que se recebe.

Ao mesmo tempo, os rendimentos do Estado não aumentaram com as nacionalizações. Para isso seria preciso que as empresas nacionalizadas fossem geridas com o mesmo espírito que as empresas privadas, isto é, no sentido de criar uma margem de lucro para investimento. Isso só era possível se houvesse espírito empresarial. Ora este faltava tradicionalmente no nosso país, em virtude, justamente, do seu passado de monopolismo de Estado. O Estado está habituado em Portugal a gerir serviços não competitivos, como os caminhos-de-ferro e os correios, empresas quase por definição deficitárias e a quem não interessa o saldo da sua actividade, visto que o Estado-Providência compensa os défices. Mas desde que o Estado se torna todo ele uma empresa capitalista num mundo de concorrência (o que acontece sempre que ele vira «Socialista»), tem de se tornar competitivo, tem de procurar a margem de lucro a não ser que confie numa providência internacional que cubra os seus saldos negativos. Criámos, assim, um Estado- empresa, sem termos passado nem hábitos empresariais. Como cobrir o défice? Recorrendo à Providência, ou seja, aos empréstimos que não podemos pagar. Durante algum tempo julgámos mesmo que esses empréstimos nos eram devidos por obrigação, e praticámos uma espécie de chantagem em relação aos prestamistas solicitado: se não nos emprestarem o dinheiro, perde-se a liberdade em Portugal. A Europa connosco! Venha, pois, o empréstimo em nome da Internacional Socialista! O empréstimo, não para o desenvolvimento da empresa, mas para evitar a sua falência isto é, a falência da liberdade. Esta maneira não empresarial de pôr a questão cifra-se em transferir para a Providência a responsabilidade da empresa. Confirma a nossa ausência crónica de espírito empresarial. Equivale a abdicarmos da responsabilidade pelo nosso destino.

Nunca nenhum Governo socialista europeu pôs a questão nestes termos, porque os governos socialistas ou sociais- democratas na Inglaterra, na Suécia, na Áustria, etc., chegaram ao Poder em sociedades capitalistas evoluídas. Herdaram, juntamente com o desenvolvimento económico 0 espírito empresarial acumulado por séculos de empresa privada. Esse espírito e essa experiência foram em parte transferidos para o Estado, donde resultou que desde logo o Estado foi concebido como uma empresa, responsável pelo seu deve-e-haver. Tendo acontecido exactamente o contrário em Portugal, encontramo-nos perante uma situação que tem duas saídas.

Uma é a imposição administrativa. Obrigar os parasitas que enchem os quadros do Estado e as empresas nacionalizadas a trabalhar debaixo do terror administrativo e policial, para atingirem uma norma que permita a acumulação de capital.

Esta solução equivale à ditadura e, além disso, é muito aleatória, porque nada nos garante que os ditadores encontrem sempre as melhores soluções económicas. Semelhante ditadura, aliás, teria de ter apoios internacionais, que na presente conjuntura mundial só poderiam ser outras ditaduras chamadas «socialistas».

Outra solução é desenvolver em Portugal a empresa privada, com tudo o que isso implica. Isto é, tentar inverter a nossa habituação histórica, obrigando cada português a ser responsável pela sua situação económica, abolindo definitivamente a ideia fixa do Estado-Providência. Esta é, parece-me, a alternativa que actualmente se põe ao nosso país e importa vê-la sem antolhos. A situação política em Portugal no próximo futuro será dominada por este problema. A solução será empresarial ou ditatorial.
»

«A alternativa», capítulo de «Filhos de Saturno», de António José Saraiva (publicado originalmente no Diário de Notícias de 29-12-1978)

1 comentário:

  1. Obrigado pela excelente citação de António José Saraiva.
    Homem muito inteligente, de esquerda mas livre — o que sempre foi bom atestado.
    Nunca foi um da esquerdalhada! Assim foi censurado, por omissão, pela esquerdalhada.
    Basta ler com atenção e pensar, e comparar.

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