«Mas esta questão do saber tem ainda outro aspecto que exige um certo esforço de atenção. Há urna tendência antiga nas nossas escolas, sobretudo no ensino médio e no dito superior, para considerar o saber corno um conjunto de conhecimentos puramente intelectuais. Saber é meter na cabeça o que os livros dizem sobre as coisas; pelo menos, é isso o que se aprende nos liceus e nas universidades, e é nesse sentido que se preparam os respectivos mestres.
Ora esta ideia do saber leva a um desenvolvimento unilateral das faculdades dos educandos. Eles tornam-se criaturas amputadas do corpo, das mãos e das zonas cerebrais que não sirvam para manipular ideias abstractas. Não são homens que saem das escolas, mas monstros desumanizados. Quando lhes tiram o livro das mãos sentem- se como meninos perdidos na floresta, perdidos e cegos, pois nem sequer obrigam a luzinha ao longe. Falta-lhes a educação do corpo, a educação das mãos, a educação da sensibilidade e a educação da vontade. Quase temos que nos dar por felizes por muitos dos nossos estudantes serem rebeldes aos estudos que lhes pretendem impor, porque isso é uma maneira de não ficarem completamente paralisados nas suas faculdades naturais. Pena que essa rebeldia não se manifeste de maneira positiva pela procura e pelo cultivo de qualidades que a escola destrói.
Quando se fala do alargamento e da elevação da escolaridade não posso deixar de sentir um certo arrepio pelos malefícios que daí vão resultar se persistirmos neste ideal de escola. A não ser que esse ideal mude, mais vale que a criança conserve as qualidades de espontaneidade e de actividade que ainda conseguiu salvar da educação primária.
O que nas nossas escolas se pretende ensinar (e também nas de muitos outros países) não é propriamente saber, a não ser que este se confunda com diplomas. O saber não é isso. O saber irriga a personalidade interna, dá-lhe capacidade para resolver situações dentro e fora de quem o possui. O que se transmite além da escola primária é, digamos, «sabença».
Antes de alargar e de subir a amplitude e o nível da escolaridade é preciso que se pense na sua qualidade. Quer- se uma escola donde saiam homens que saibam mexer nas coisas de que os livros falam, que saibam tomar decisões e aplicá-las, que saibam escolher, que saibam «ver» (como queria o Alberto Caeiro, mas, coitado, ele nem sabia os nomes das plantas...) uma flor, que saibam cumprir com rigor o que a si próprios propuseram, que saibam empenhar- se em projectos concebidos com paixão e com lucidez. E não uma escola de (pseudo-) intelectuais. Sem isso o aumento da escolaridade não é só inútil, é indesejável.
Dir-se-á que aquelas qualidades se aprendem fora da escola. Seja. Mas então que não venha ela destruí-las.»
«Democratização do ensino e democratização do saber», capítulo de «Filhos de Saturno», de António José Saraiva (publicado originalmente no Diário de Notícias de 10-11-1978
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