16/04/2014

Pro memoria (164) – O passado reconstruído à medida do presente

Qualquer pessoa que tenha atingido a idade adulta por alturas do PREC lembrar-se-á que a facção militar de inspiração comunista-esquerdista, dominante a partir do golpe falhado de 11 de Março de 1975, fez tudo o que pôde para se agarrar ao poder com procuração do PCP e dos grupelhos esquerdistas. Essa facção teve que ser varrida por outra facção mais moderada de inspiração socialista e social-democrata (na altura considerada direita) no golpe de 25 de Novembro.

Por seu turno, a facção militar moderada agarrou-se igualmente ao poder instalando-se no Conselho da Revolução para tutelar a classe política, o que fez até à extinção desse órgão com a revisão constitucional de 1982. Apesar ser bastante óbvia a necessidade de tutela por parte dos tutelados, como se viu mais tarde com 3 intervenções do FMI, os tutores em causa não eram certamente os mais indicados. Finalmente, com grande desgosto por parte de muitos dos seus cabecilhas, os  militares conformaram-se com o regresso aos quartéis, não sem alguns episódios próprios de uma república das bananas como o do general Eanes, à época presidente da República, que fabricou, ou deixou fabricar em seu nome, um partido – o celebrado PRD que partindo com mais de um milhão de votos nas eleições de 1985 se desintegrou nas eleições de 1991 com 35 mil.

Houve dois líderes políticos determinantes no desmantelamento do PREC que empurraram os militares para fora dos centros de decisão política: Francisco Sá Carneiro, até à sua morte no final de 1980, e, principalmente, Mário Soares, a quem devemos uma parte significativa de não sermos hoje uma espécie de Venezuela na Europa do Sul e, em particular, não termos no lugar do coronel Chávez o general Eanes, por quem Mário Soares nutria um mal disfarçado ódio de estimação.

Passados trinta anos, seja por um processo de radicalização caracterizável como esquerdismo senil, seja por outra razão qualquer, o Dr. Soares reconstruiu essa parte da história recente portuguesa e hoje (ou melhor na 2.ª feira, na romagem de saudade dos jarretas na Gulbenkian) tece laudas aos «militares de Abril»: «quem fez o 25 de Abril foram exclusivamente os militares» (é verdade, se reduzirmos o «25 de Abril» ao golpe militar dos oficiais subalternos com fins corporativos relacionados com a promoção a capitão dos milicianos que iam dar o couro na guerra colonial); «não foram os civis, nem os partidos políticos»; revelaram «uma enorme tolerância» (se esquecermos os episódios grotescos do general Otelo e do COPCON que pretendia engavetar e fuzilar os reaccionários no Campo Pequeno); «não quiseram o poder político, pelo contrário, abriram a porta aos partidos políticos. Revelaram um desinteresse extraordinário» (na verdade, revelaram um grande apego ao poder ainda hoje visível quando se consideram uma espécie de pais da pátria) e last but not least, surpreendentemente classificou Eanes com «um excelente Presidente da República».

Ao tentar reconstruir o passado, estará o Dr. Soares a tentar a aplicar a segunda parte do postulado de George Orwell («quem domina o presente domina o passado»), na esperança de tirar proveito da primeira («quem domina o passado domina o futuro»)?

2 comentários:

  1. É raro discordar das sua opiniões e o seu blog é dos que conheço o melhor de todos. Talvez por não haver regra sem excepção, desta vez discordo da sua perspectiva do que foi o a intervenção do Dr. Soares no regresso a quartéis do MFA e respectiva extinção. É claro que sendo Soares um “civilista” não via com bons olhos a liderança militar. Até porque lhe impedia o acesso ao poder. A divergência de natureza ideológica não seria relevante, aliás como se viu antes. Francisco Sá Carneiro obviamente contribui. Já Soares foi empurrado. Se não tivesse havido a reação a norte de Rio Maior, nem a fonte luminosa teria “piscado”.
    O Chico esperto oportunista que foi um demagogo brilhante, limitou-se a cavalgar a onda, beneficiando largamente da lamentável confusão que o povo iludido e ignorante faz entre socialismo e bem estar.
    Dito isto e com excepção do terceiro parágrafo, assino por baixo.

    ResponderEliminar
  2. Caro Rui C.,
    Obrigado pela sua apreciação. Escrevi sobre o que objectivamente Soares fez.
    Dito isto, admito sem dificuldade que o tenho feito mais por interesse do que por convicção, como em muitas outras ocasiões.

    ResponderEliminar