«Em Loures, Vítor Gaspar chama-se Bernardino Soares. Ao dizer isto, não pretendo ofender ninguém: nem o amigo de Schauble nem o admirador de Kim I1-sung. Destaco apenas um pequeno traço em comum: o ex-ministro das Finanças celebrizou-se pela descoberta de que "não há dinheiro"; em Loures, à frente de um município arruinado, o ex-líder parlamentar do PCP foi agora trespassado pela mesma iluminação.
Eis alguns dos desabafos do novo presidente de câmara, segundo a imprensa e o site da autarquia: a "situação financeira (do município de Loures) é dramática", "temos de procurar medidas que podem ajudar a reajustar os serviços da câmara", "temos de ver onde podemos reduzir os custos", as "decisões (estão) muito condicionadas", há que "fazer muito com pouco". Aos empregados municipais, extirpou todas as ilusões: "Seremos exigentes porque o serviço que prestamos terá de ser mais eficaz." "Muito com pouco"? .. O slogan de Passos Coelho, em junho de 2011, era "fazer mais com menos". Estará a água de Loures ligada à canalização "neoliberal" da Presidência do Conselho de Ministros?
A imprensa anda enxameada de videntes a jurar que o Partido Socialista, uma vez no Governo, continuará a austeridade aliado ao PSD. Ora bem: em Loures, o PCP prepara-se para aderir à austeridade - e em aliança com o PSD local. No caso do PS, diz-se que essas coisas acontecem porque o partido não é suficientemente de esquerda. E o PCP?
Bernardino não se converteu. Continua a ser comunista e a preferir a "democracia" da Coreia do Norte. Simplesmente, o seu antecessor socialista em Loures deixou-o sem dinheiro. Não é preciso chamar Seguro. No seu lugar, também João Semedo ou Rui Tavares estariam a falar como Vítor Gaspar.
O caso, mais do que' político, é filosófico. Para muita gente à esquerda, a austeridade é uma opção ideológica, sem outra explicação. A ação política não tem limites. Por isso, só há cortes, porque há "neoliberais", ansiosos por liquidar o Estado social. Se não houvesse "neoliberais", nunca faltaria dinheiro. Vamos admitir que o mundo é assim, feito apenas de vontade e de representação. Acontece que existem muitas vontades, e cada vontade tem um limite nas vontades contrárias. É essa a razão de não haver dinheiro em Loures. Porque em Loures há provavelmente dinheiro - não na Câmara, mas nos bolsos e nas contas bancárias dos seus residentes. Bernardino, sensatamente, pressupõe que a vontade dos munícipes não é entregar-lhe rendimentos e poupanças. Na Corei a do Norte, poderia expropriá-los, através de nacionalizações ou de inflação, e "reeducar" os recalcitrantes. No Portugal do euro, não pode. E mesmo no reino dos Kim, nunca conseguiria ir além do que os seus súbditos produzissem. É isso a "realidade": aquilo que resiste à nossa vontade e à nossa ideologia.
Durante anos, na Assembleia" da República, Bernardino teve apenas de verter soundbites. A "realidade" nunca o incomodou. Foi preciso ir a Loures. Àqueles que fantasiam "alternativas", é necessário 'lembrar: em Portugal, durante muitos anos, governar será sempre ir a Loures.»
Rui Ramos, no Expresso
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