«O que divide a união monetária? Esqueçam, por uns minutos, as anedotas e recriminações sobre a preguiça do sul e o puritanismo do norte. Consideremos outra hipótese.
Os países em dificuldade no sul - Portugal, Espanha, Grécia, Itália - têm todos a sua história clínica específica, mas algumas características comuns. Por exemplo, são os que menos exportam em relação ao PIB e onde é maior a proteção aos trabalhadores. Ou seja, são os mais pobres e aqueles que mais confiam no poder para obter o que não conseguem pelo trabalho. Partilham ainda outra distinção: nas três décadas anteriores à unificação monetária, foram os países da Europa ocidental (com a Irlanda, precisamente) em que a inflação média anual foi mais alta.
Este último dado sempre me pareceu a chave da questão. Na Alemanha, a inflação média anual entre 1970 e 1999 foi de 3%. Na Grécia, de 14%. Detrás destes números estão dois tipos de comunidade política e de economia. Num país, o Estado defendeu a moeda; no outro, abusou dela. Num país, o papel do Estado é manter um quadro estável para os particulares contratarem e negociarem entre si; no outro, o Estado é um recurso que fações, grupos de interesse e sindicatos tentam capturar a fim de o explorar em benefício próprio, sem atenção aos custos. Ou seja, coexistem no euro dois sistemas muito diferentes. Um em que os cidadãos atuam através da concorrência e aa negociação; outro em que recorrem à 'luta' e à corrupção. Um em que a moeda é da competência de um banco central independente; outro em que é um instrumento do governo. Os alemães vivem do poder da economia; os gregos da economia do poder.
Na Grécia, como se costumava dizer do sul da Itália, a grande indústria é o poder político. Ora o poder, usado desta maneira, precisou sempre de violentar a moeda, sob a forma de desvalorização e inflação. Primeiro, porque lhe permite dar com uma mão o que tira com a outra, jogando com a diferença entre o 'nominal' e o 'real', tão conhecida dos portugueses nas décadas de 70 e de 80: os salários aumentavam nominalmente, mas diminuíam realmente. Segundo, porque o deixa equilibrar as contas, quando necessário, à custa dos aforradores e dos que menos podem protestar (os mais pobres). Foi esta 'competitividade' que o euro, com as suas regras germânicas, tirou ao sul da Europa. A inflação, que na Alemanha não deixaria o sistema funcionar, era o que na Grécia permitia ao sistema funcionar.
Estes dois sistemas não podem usar a mesma moeda, porque a moeda não é a mesma coisa para um e para outro. Por isso, a questão do euro não é simplesmente de eurobonds ou pactos fiscais. É de saber se as mudanças civilizacionais são ou não possíveis. A inflação na Alemanha ou a disciplina na Grécia seriam, para cada um desses país, a refundação do seu modo de vida. Em suma: ou a UE extingue o euro (ou restringe o número de países que o usam) e reconhece que é uma união com dois sistemas; ou mantém o euro com todos os atuais membros, e nesse caso um dos sistemas tem de destruir o outro.»
«UMA UNIÃO, DOIS SISTEMAS», Rui Ramos no Expresso
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