«NÃO acompanhei de perto a questão do referendo sobre o aborto e os esforços legislativos que se seguiram. Mas desde há mais de 20 anos que tenho um conhecimento razoável dos Estados Unidos, pelo que o melhor contributo que posso dar é, provavelmente, falar do caso americano, que em certo sentido 'vai à frente' do caso português.
O controle reprodutivo - primeiro, a generalização dos meios contraceptivos, depois, a liberalização do aborto - teve um enorme efeito na condição da mulher americana. É notável o aumento de mulheres com curso superior ou pós-graduação, com participação activa na vida política, com carreiras profissionais onde há cinquenta anos praticamente não eram vistas. É, também, notável o maior equilíbrio de funções nas relações familiares.
MAS o que também salta à vista do economista (pelo menos deste economista) é aquilo que Diane Pearce caracteriza como a 'feminização' da pobreza: o facto de as mulheres representarem uma fracção cada vez maior dos pobres.
Um estudo recente de três economistas americanas sintetiza alguns dos factos da situação actual. A taxa de pobreza em famílias com dois adultos é de 7%. Em famílias com apenas um adulto, o valor sobe para um astronómico 40.3%. Dentro deste grupo, mais de 80% corresponde a mulheres solteiras. Tudo isto aconteceu nas últimas décadas; nos anos 50, o número de mães solteiras era entre um terço e metade do número actual.
TEMOS de ser cautelosos para não confundir correlação temporal com causalidade. Mas a explicação de George Akerlof, Janet Yellen e Michael Katz parece plausível. A ideia é que o controle reprodutivo reduz o poder de negociação da mulher. Até aos anos 60, a mulher pode exigir a promessa de casamento como condição para relações pré-matrimoniais. Após o choque tecnológico-legal-social da pílula e do aborto, esta condição perde peso. De facto, o 'casamento de pena1ty' tornou-se rapidamente uma coisa do passado.
Ora, quem perde com a mudança são as mulheres que não sabem usar a pílula; ou que acham que abortar é um crime; ou que, simplesmente, querem ter filhos. Perdem porque acabam como mães solteiras - algumas por opção, certamente, mas muitas por força das circunstâncias.
A mulher ganhou com a liberalização do aborto pois agora tem maior liberdade de escolha; logo, a condição feminina melhorou com o aborto liberalizado - este argumento está errado por dois motivos. Primeiro, porque não toma em consideração os efeitos indirectos que a liberalização do aborto teve, nomeadamente ao contribuir para desvalorização do casamento. Em segundo lugar, porque se trata de um raciocínio sobre a média quando de facto o impacto do aborto liberalizado foi muito diferente entre as mulheres ricas e as mulheres pobres.
PARA um economista, esta é a ironia do debate sobre a liberalização do aborto: enquanto que a defesa das mulheres mais pobres e desprotegidas é frequentemente apontada como argumento chave, a evidência dos Estados Unidos sugere que a liberalização piorou justamente a situação das mulheres mais pobres e desprotegidas.»
O aborto e a condição feminina, Luís Cabral, professor da Universidade de NY, no
SOL
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