26/03/2007

CASE STUDY: Salazar, Felipão e o engenheiro Sócrates

Tenho dificuldade em encontrar um dia mais humilhante para a esquerda em geral, em particular para o PC (a nossa relíquia) e a esquerdalhada, do que o dia de ontem em que o professor Salazar, o Botas, bateu irremediavelmente Cunhal como «o maior português de sempre».

Já escrevi várias vezes aqui no Impertinências sobre o Botas, sob cujo regime vivi suficientes anos da minha vida. Recordo, outra vez, uma delas, escrita a propósito do SuperMário.
Será preciso recordar que Salazar foi saudado pela esmagadora maioria dos que viveram a baderna republicana, entre 1910 e 1926, como um cirurgião que limpou a gangrena que corroía o tecido social e um contabilista que sabia fazer contas e pôs ordem no peditório das migalhas do orçamento? Que o fez impondo uma ditadura meio bafienta, não foi visto como um problema, pelo menos até ao fim da guerra, em 1945. Parecia mais um mal menor e necessário, comparado com o clima político-social que se vivia nessa altura na Europa continental, de Vilar Formoso até Vladivostoque. A oposição ao Botas limitava-se ao PC e a uma folclórica sucessão de conspirações falhadas em que a oposição republicana (a que, recorde-se, pertencia o doutor Soares) se embrulhava regularmente. O povo, esse, tratava da vidinha e via o Botas como um seguro contra devaneios, loucuras e assaltos à mesa do orçamento. O regime fassista mostrava contenção onde outros mostravam holocaustos e gulagues. E a coisa foi assim até ao início da guerra colonial. A partir daí e até à queda da cadeira e posterior passamento, o doutor Salazar foi de facto pouco apreciado pelas gerações que chegaram à idade da razão entre 1961 e 1968 e perceberam que iriam talvez morrer pela pátria do doutor Salazar, ainda que em quantidades relativamente moderadas face às que a baderna republicana tinha incompetentemente sacrificado na 1ª guerra - só na batalha de La Lys morreu o equivalente a mais de metade das baixas mortais na guerra colonial que durou 13 anos (7.000 e 12.000 respectivamente).

Para todos os que chegaram a idade da razão depois de 1974, o doutor Salazar, o Botas, é um cromo dinossáurico de que alguns dos cromos seus pais se queixavam nos intervalos de se queixarem do custo de vida que não lhes permitia comprar o ansiado plasma. Tudo por junto, deve haver uns 5% dos eleitores que se podem inflamar com as boutades do doutor Soares e mais 0,1% que se sentirão transportados pelos delírios do Ivan. Mesmo esta insignificância, no lugar do Ivan, eu não a consideraria como garantida, porque até a minha prima Violinda percebe que se há alguém «que se apresenta não como a solução para a crise, mas como um elemento de continuidade numa solução já existente» só pode ser o doutor Soares, que se vencesse as eleições seria o presidente de todos os situacionistas, 32 anos depois do almirante Tomás.
Como se vê enganei-me redondamente. Pelos vistos, o Botas não é um cromo dinossáurico para a maioria dos que se deram ao trabalho de votar no concurso. E porquê? pergunta-se. Por uma daquelas coincidências que só podem ser explicadas por uma boa teoria da conspiração, a resposta à pergunta pode encontrar-se no ensaio que o blasfemo Pedro Arroja escreveu sobre Felipão e as razões do seu sucesso. É um texto tão na mouche (aparte as fantasias papistas) que só não o transcrevo porque pode ser lido aqui no seu habitat natural.

As razões do sucesso de Salazar in illo tempore e ainda hoje devem-se essencialmente às mesmas razões do sucesso de Scolari - uma visão e uma liderança perfeitamente adaptadas aos desafios e à época e à cultura local. Baseado na minha experiência de muitos anos a liderar songamongas portugueses (e outros) garanto, sem quaisquer dúvidas, que um e outro são mestres no estilo de liderança pater benignus. Um dia Scolari, como Salazar, cairá da cadeira e entrará em declínio, mas será recordado mais tarde como é hoje Salazar.

E o que acontecerá ao engenheiro Sócrates dentro de 40 anos? Alguém o recordará? Até pode ser, mas de modo completamente diverso. A semelhança de estilos é perfeitamente superficial. Sócrates também é autoritário, mas tem pouca autoridade. Sócrates não tem competências visíveis, para além da manipulação mediádica, o contrário de Salazar, um jurista e financista competente, e de Scolari, um jogador esforçado e um treinador experimentado. Sócrates é arrogante, o contrário da simplicidade e (aparente) humildade de Salazar e de Scolari. Sócrates quer impor a sua visão porque é a dele. Salazar impôs e Scolari impõe a sua visão porque são (se apresentam como) meros portadores dum desígnio.

Chegado a este ponto, antevejo a repulsa do liberalismo académico, na remota hipótese de algum dos seus representantes chegar até aqui. Então e o Homo Liberalensis? perguntarão. Não o vejo escondido nas profundezas da alma portuguesa à espera do dia da libertação, respondo.

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