20/11/2006

ESTADO DE SÍTIO: sinais de fumo - «a engenharia interpretativa»

As reacções ao OE 2007 por parte de muitas luminárias, umas supostamente independentes e outras da oposição, foram com poucas excepções estranhamente eufemísticas perante factos óbvios. A conversa resumiu-se quase sempre à treta da consolidação possível, do orçamento possível, do estamos no bom caminho, bla bla.

Foi preciso esperar pela doutora Manuela Arcanjo, colega do engenheiro Sócrates num dos governos Guterres, para que coisas mais substanciais fossem escritas. Leia-se o texto sibilino da ex-secretária de estado do Orçamento no DN de hoje.

O mistério do Orçamento do Estado

A leitura do Relatório que acompanha a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2007 deixou-me diversas certezas: não é, ao contrário do afirmado, um OE orientado para o crescimento económico; o esforço de consolidação é menos intenso do que o realizado em 2006 e fortemente baseado na receita; são discutíveis, por razões diferentes, duas das suas quatro prioridades (combater a pobreza apenas ao nível dos idosos e prestigiar Portugal no âmbito da futura presidência); pretende ter por referência uma reforma que ainda não produz efeitos (Segurança Social) e outra que não existe (Saúde).

Mas a minha atenção centrou--se na misteriosa relação entre a publicitada redução nas despesas de funcionamento (despesas de pessoal e aquisição de bens e serviços) da administração central e a reforma da administração pública. Algumas questões colocadas ao ministro das Finanças (MF) ficaram sem resposta; a outras foi respondido que não se "pretendia cortar cabeças" ou que as novas leis orgânicas iriam reduzir de forma muito expressiva as estruturas e cargos de direcção. O que diversos analistas interpretaram como prudência pode ter outra explicação.

Ainda com base no referido relatório, é possível concluir que as despesas de pessoal apresentam uma redução de cerca de 610 milhões de euros (-4,5%) face a 2006 (estimativa de execução, incorporando já o aumento da massa salarial); ora, a redução prevista apenas nos ministérios da Educação e da Saúde aponta para cerca de 670 milhões de euros. Duas conclusões: primeira, são os ministérios onde mais se faz sentir o congelamento das progressões, a contenção salarial e as aposentações; segunda, diversos ministérios apresentam mesmo um aumento desta despesa.

No que respeita à aquisição de bens e serviços, verifica-se que em 7 dos 15 ministérios há um aumento desta despesa. Este não é o resultado oposto ao esperado pela reorganização dos serviços?

Como é que estes dados se relacionam com as muito discutidas reduções de 3,6% e de 5% na despesa de funcionamento do Estado e dos serviços e fundos autónomos, respectivamente? No primeiro caso, trata-se simplesmente de considerar apenas a componente financiada por receitas gerais, o que traduz uma "engenharia interpretativa" e ainda uma má prática orçamental, pelo recurso acrescido a receitas consignadas. No segundo caso, trata-se de uma cativação que se tornará, ou não, em redução efectiva no final da execução.

Duas conclusões alternativas: os efeitos da reforma da administração pública não estão contemplados no OE ou, se estão, são contrários ao esperado. Se esta não faz sentido, a primeira pode traduzir uma reforma adiada. O mistério não está objectivamente resolvido, mas agora entendo a razão para muito riso e sorriso do MF num debate televisivo recente.
Depois dum congresso aclamativo, serão as primeiras fendas no edifício socrático?

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