Qual é a sua opinião, como antigo ministro das Finanças, sobre o Orçamento do Estado (OE) para 2007?
Este orçamento é relativamente decepcionante porque o Governo em grande parte funcionou ao contrário do que costuma fazer na gestão das expectativas. Criou uma expectativa tal que iria reduzir a despesa efectiva e, pelo que se vê, a “montanha pariu um rato”. Isto sem o prejuízo de ter aspectos positivos. Assim como foi bastante prudente face ao cenário macroeconómico, foi igualmente muito timorato na despesa. A consolidação de 4,6% para 3,7% deve-se a vários factores, mas não se pode ignorar dois, que seriam desejáveis que não acontecessem. Nomeadamente, o aumento da pressão fiscal de 0,4% nos impostos e 0,2% na Segurança Social, portanto, no total de 0,6% do PIB. Do lado das despesas houve um corte no investimento com excepção da ciência e tecnologia. Estas não são as maneiras mais desejáveis para se fazer uma consolidação orçamental.
Discorda do Governo quando este afirma que a consolidação é feita pelo lado da despesa, visto que o seu peso no PIB cai e o da receita mantém-se?Atenção, o rácio das receitas mantém-se não pela via fiscal, pois estas aumentam 0,6% relativamente ao PIB. O que diminui são outro tipo de receitas. A pressão fiscal aumenta. A questão da despesa face ao PIB, evidentemente que é bom que esta desça. No entanto, deve-se recordar que de 2004 para 2005 subiu quase 2% do PIB. Portanto agora está a recuperar dessa evolução. Dizer que é histórico é uma expressão que o primeiro-ministro utiliza muito. Certamente não estará a par da história dos últimos 20 anos das finanças públicas. É uma questão de exagero político. Toda a gente pensava que os gastos caíriam não só em termos do PIB mas também no seu valor nominal e real. Em 2004, a despesa total agregada foi de 65,5 mil milhões quando em 2007 está previsto que seja de 72,5 mil milhões de euros. Obviamente que o monstro cresceu. Contentar-se apenas com um rácio… Aliás, o crescimento do PIB acima do previsto deveria reverter para o sector privado e não para uma acomodação da despesa nominal e real. Quero até alertar para um aspecto que é o seguinte: a actualização de Dezembro do Programa do Pacto de Estabilidade e Crescimento diz que, em 2007, o impacto atribuído às principais medidas de consolidação da despesa corrente são de 1055 milhões de euros na restruturação da Administração Pública, recursos humanos e serviços e depois tem mais cerca de 800 milhões de euros na saúde e Segurança Social. Ou seja, 1.800 milhões de euros de redução absoluta. Ora, isto não está reflectido no orçamento. Nas despesas com pessoal do subsector do Estado passamos de 13,5 milhões de euros em 2006, para 13,4 mil milhões de euros em 2007. Isto representa uma queda de 100 milhões de euros e não de 1055 milhões de euros. Há um desajustamento.
Como é que explica esta discrepância?Eu não explico, constato. Das duas uma: ou o Governo rasgou o PEC, coisa que não pode, ou o Orçamento não está de acordo com o relatório apresentado do PEC. A variação em percentagem do PIB é um prémio de compensação menor, que é positivo, mas não é o suficiente para o que o Governo anda a apregoar. Repare-se que o aumento da despesa entre 2004 e 2007 é de sete mil milhões de euros. Não é uma bagatela.
E a poupança do orçamento ainda depende da concretização do PRACE…Exactamente. Isto reflecte algum atraso na concretização das reformas mais difíceis como a da Administração Pública. Mas, em abono da verdade sei que entre a intenção voluntariosa e bem intencionada de um governante – e este Executivo tem boas intenções – e a sua concretização vai uma grande distância. E aí o Governo, por um lado, foi voluntarioso e determinado, mas, por outro lado, foi ingénuo ou pensou que bastava anunciar as medidas que elas se concretizariam por si só. Nos últimos anos, incluindo os que eu estive no Governo, tem-se reduzido a administração pela via do preço, do congelamento das carreiras e da queda real dos salários da função pública. Este tipo de medidas são como a anestesia, que quando passa volta a dor.
Acredita que o Governo vai conseguir cumprir a promessa de reduzir 75 mil funcionários até ao fim da legislatura?Até agora, e já passaram quase dois anos, só saíram seis mil, ou seja, concretizou cerca de 9% do objectivo. Primeiro quero dizer que é desejável que isso aconteça. Mas, tenho muitas dúvidas. Aliás, já participei em PRACEs com outro nome e como ministro de Trabalho vi extintas várias direcções-gerais e o número de funcionários não é inferior ao que eu tive. E mais, esta história que o Governo habilmente lançou de por cada dois que saem entra um, é uma coisa mal contada. Isto porque, a não ser que as pessoas vão para fora, saírem dois por cada um que entra significa que ficam três. Dois na Caixa Geral de Aposentações e um no activo. O Estado passa a pagar pensões a dois deles e salário a um. Não há um ganho líquido como nas empresas.
E então como é que se poderá diminuir o número efectivo de pessoas que dependam do Estado?Eu reconheço uma grande dificuldade que qualquer Governo terá nesta questão. Concordo com algumas medidas do Executivo como os supranumerários, mas a diminuição efectiva da Administração, considerando activos e aposentados, é o nó górdio de tudo isto. Por isso, a fórmula não pode ser a do Governo mas sim por muitos dois que saem não entra nenhum.
E também haver mais mobilidade e flexibilidade..Sim. Eu acho que nesse aspecto o Governo está a procurar fazer alguma coisa. Sabe que em Portugal a mobilidade é uma das questões trágico-cómicas. Até nas empresas, mudar de uma sala para a outra é o fim do mundo. A nossa convivência com a ideia de mobilidade é terrível. Por isso é que eu penso que o Governo foi muito voluntarioso, mas também um bocado lírico. E agora está a enfrentar as dificuldades que qualquer Executivo enfrentaria.
Seria favorável a uma alteração da Constituição para que o Estado possa dispensar funcionários?Há um aspecto que tem sido corrigido nos últimos anos, que este Governo consolidou mais. Os funcionários entram agora com um contrato individual de trabalho que é regido pelo código laboral. Por aí temos a questão resolvida. O problema é o stock de funcionários com contrato vitalício. E para esses não vale a pena alterar a constituição.
Relativamente às acusações de suborçamentação presente no OE 2007, principalmente no financiamento das Estradas de Portugal, o que pensa?Parece-me manifesto. Até ao ponto do deputado João Cravinho ter vindo a admitir que as Estradas de Portugal terão que se endividar, o que não deixaria de ser uma ironia, esta sim histórica. Isto até não seria suborçamentação, mas sim desorçamentação. Que é mais grave. Há também suborçamentação nas indemnizações compensatórias. E mais, existem agora as receitas extraordinárias travestidas, como a venda de património.
O ministro das Finanças afirmou que estas vendas não se poderiam considerar como receita extraordinária porque o seu montante era semelhante ano após ano...É realmente uma lógica interessante. Então, só no primeiro ano é que seria uma receita extraordinária? É o problema da regularidade? Não, é da natureza do acto. Vou-lhe dar um exemplo. Vamos supor que entrávamos em guerra. As despesas da guerra são extraordinárias e não é por serem iguais todos os anos que deixam de ser extraordinárias. Isto está escrito desde os manuais do professor Teixeira Ribeiro. O facto de uma receita ser extraordinária não depende do seu valor ser igual ao dos anos anteriores, mas sim da natureza do acto.
O Governo disse que a carga fiscal não aumenta porque esta subida deve-se ao alargamento da base fruto da maior eficácia fiscal. O que pensa?É positivo que exista uma melhoria na eficácia da máquina fiscal. Admito que parte dos ganhos venha daqui. Porém, outra parcela não pode ser explicada por este fenómeno. Basta analisar o quadro dos impostos. O ISP aumenta 10,6%. E das duas uma, ou tem subjacente a subida do preço do petróleo, coisa que não é incluída no orçamento, ou uma sobrevalorização do dólar face ao euro ou o aumento de 10% no consumo, o que não acontecerá. Portanto, aí há aumento da carga fiscal. No tabaco também. E aí há sobreavaliação das receitas. Basta olhar para a execução deste ano. Por outro lado, o IRC sobe 15%. Admito que haja algum ganho de eficiência, mas parece-me que existe sobreestimação de novo. Quanto aos outros impostos, o IVA parece-me adequado. O IRS cresce 4% com as contribuições para a Segurança Social a aumentarem 5,6%. Não sei porquê. Um estará subestimado e outro sobreestimado. Portanto, no ISP, no imposto sobre o tabaco e com as taxas moderadoras há um efectivo aumento de impostos. A explicação do Sr. Ministro colhe parcialmente, mas não totalmente.
30/10/2006
CASE STUDY: a contabilidade pública é uma ciência oculta (5)
Excertos duma esclarecedora entrevista do Semanário Económico a António Bagão Félix, antigo ministro das Finanças:
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