22/11/2004

DIÁRIO DE BORDO: A poesia e o ocultismo nas provas de admissão para futuros desempregados. (ACTUALIZADO)

Um leitor habitual enviou ao Impertinências (e a mais 135.433 amigos dele) um poema de autor desconhecido (*), que poderia muito bem fazer parte duma prova nacional conjunta de Português e Matemática para admissão a qualquer um dos 1.637 cursos que constituem a oferta das nossas universidades aos jovens candidatos a futuros desempregados. Só seriam admitidos os candidatos que conseguissem explicar em verso branco todo o significado oculto que perpassa pelo poema (a referência ao ocultismo parece-me apropriada - quem não concorda que a matemática é uma ciência oculta aos tenros cérebros dos nossos jovens infantes?).

Matemática lírica

Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.

Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base...

Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo ortogonal, seios esferóides.

Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela.

Até que se encontraram
No Infinito.

"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.

"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."

E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.

E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz.

Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Rectas, curvas, círculos e linhas senoidais.

Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.

Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar

Constituir um lar.
Mais que um lar.
Uma Perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissectriz.

E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.

E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.

E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum...

Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.

Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo.
Uma Unidade.

Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fracção
Mais ordinária.

Mas foi então que Einstein descobriu a
Relatividade.
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como aliás, em qualquer
Sociedade.

ACTUALIZAÇÃO:
(*) O leitor habitual esqueceu-se de dizer que o poema não é de autor desconhecido. É do Millôr Fernandes. É muito difícil ter leitores decentes nos tempos que correm. A coisa só se desculpa porque, na prova de admissão que sugiro, qualquer das duas respostas à pergunta sobre a autoria feita aos infantes deveria ser considerada certa.
Seja como for, a verdade é que no Impertinências cada post não é um número e cada número não é exemplar.

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