04/02/2004

SERVIÇO PÚBLICO: Ainda os «arrumadores de carros» e as elites.

Se soubesse que a doutora Isabel Fernandes iria escrever o que escreveu na Coluna de Opinião da Síntese de Notícias divulgada ontem pela Ordem dos Economista, não me teria dado ao trabalho de escrever o que escrevi.

Como o texto ainda não foi publicado no site da OE, espero que ela não se importe que o transcreva aqui integralmente.

…Ainda uma entrevista politicamente incorrecta
por Isabel Fernandes

Foi com muita mágoa que li a entrevista que José Manuel de Mello deu ao Expresso no passado fim-de-semana. E com foi com maior mágoa, ainda, que li alguns comentários que ela desencadeou.

Para quem, nos anos 60, iniciava ou desenvolvia em plena maturidade a sua actividade profissional e acompanhava, mesmo que de modo superficial, o que era o mundo político e económico do Portugal da altura, não pode deixar de reconhecer o relevante papel que o grupo Mello desempenhou na vida portuguesa.

E não só em termos económicos – o que já não seria pouco, pela audácia de trazer para Portugal investimentos que “rompiam” com a estrutura mesquinha e garantista do “condicionamento industrial” cujo espírito marcava ainda as mentalidades e comportamentos.

Também em termos políticos o grupo Mello mostrou, nesses tempos, uma abertura impar – dando emprego a gente assumidamente de esquerda, na altura em que os conselhos de administração de grandes empresas integravam, em regra, personalidades da Câmara Corporativa e do “establisment”, como garantia da “pureza” das ideias corporativos; e os funcionários públicos eram obrigados a assinar um documento jurando por sua honra que “não partilhavam ideias subversivas” para poderem ingressar na função pública.

O que terá feito com que este homem – um dos que em tempos conduziram o Grupo Mello por campos abertos, política e economicamente, tentando colocar o Portugal salazarento na rota internacional, obviamente integrado, ele próprio, no establishment – venha agora a dar uma entrevista tão amarga e desiludida?

É certo que também o seu grupo se veio sentar à mesa do Orçamento – tal como o fizeram muitos dos empresários que ele critica na sua entrevista. Porquê, então, esta amargura?

E depois: atentando no estado “comatoso” da nossa opinião pública: não encontramos aí os mesmos sinais de amargura e de desilusão?

Para além do escândalo com as afirmações produzidas, valeria a pena olhar para a s causas do mau estar generalizado que acompanha a sociedade portuguesa

O que é certo é que Portugal vive a pior crise dos últimos cinquenta anos: e, muito para além da falada crise económica, o que é indubitável e assustador agora, é a terrível crise de valores e de liderança que diariamente transborda para a opinião pública.

Se nos faltassem exemplos, poderíamos olhar para as últimas notícias sobre os sinais quanto ao rigor e cumprimento das normas gerais que regem os agentes económicos para vermos que, independentemente de os comportamentos se enquadrarem ou não, no mesmo âmbito processual, o certo é que a mensagem para os agentes é completamente errada do ponto de vista do rigor e da lealdade comportamental.

A rotina dos sinais que os lideres e as instituições, enquanto tal, dão à sociedade derivam mais do facilitismo, do “desenrasca”, do poder pelo poder, do culto do dinheiro e da habilidade, do que de uma cultura de rigor, de equilíbrio, de honestidade, de trabalho e coerência.

E os resultados estão à vista:

- Da crise das pescas e da agricultura (para onde foram os dinheiros comunitários, descontados os gastos no abate de frotas e de oliveiras, e de vinhas…?); à crise da competitividade (e os dinheiros para formação profissional?, e para infra-estruturas, afinal tão desarticuladas?);

- Passamos agora, de modo completamente chocante para a crise das instituições que deveriam ser de um Estado democrático, mas que, tudo parece, da democracia só assumiram as benesses propiciadas…

É tudo tão mau? Claro que não: existem – e são conhecidos e divulgados casos exemplares, no campo empresarial, no campo político, no campo intelectual e social: só que os sinais que a generalidade dos líderes emite não permitem capitalizar e mobilizar os portugueses, a sua auto-estima e a sua determinação.

Será que vão acordar a tempo?

Ou só nos restará suspirar pela Ibéria: porque de outro modo seremos ingovernáveis?



Há um facto por mim esquecido, que a doutora Isabel Fernandes justamente releva: «o grupo Mello mostrou, nesses tempos, uma abertura impar – dando emprego a gente assumidamente de esquerda». Não tenho a certeza que os seus indignados críticos de hoje o tivessem feito, mutatis mutandis.

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