Quando aqui citei o doutor José Manuel de Mello que respondeu «talvez arrumadores de carros» à dilacerante pergunta do doutor Nicolau Santos «qual é o nosso destino como país e como povo?», não podia imaginar reacções indignadas e rebarbativas como a do causa nossa, pela mão de Vicente Jorge Silva, aos «tubarões das grandes famílias que sustentam o velho imaginário comunista», «senhorios da pátria» e beneficiários «do proteccionismo industrial do salazarismo». Fecho os olhos, flashback de 30 anos, outra vez - revejo o Comércio do Funchal, o famoso vómito cor-de-rosa, no dizer pitoresco de Mário Castrim, um dos próceres do «imaginário comunista».
Não podia imaginar, porque me parecia evidente que J. M. de Mello did not mean it. Era lá possível que um homem que tinha sido desapossado das suas empresas (o grupo CUF era em 1974 o maior grupo empresarial português), que tinha ido malhar com os ossos na choça sob uma acusação delirante, que emigrou e tentou reconstituir no estrangeiro o seu grupo, que voltou para comprar as suas empresas das mãos do Estado que o tinha expropriado, que podia ter ficado a viver dos rendimentos que as sobras do esbulho lhe proporcionariam e, em vez disso, voltou para um país de pedintes, de empresários da treta, para investir dinheiro num negócio de muito longo prazo (saúde e cuidados da terceira idade), que será o negócio do século, mas ainda não é, era lá possível, perguntava-me, que o «talvez arrumadores de carros» fosse para ser lido à letra? Nunca pensei.
O homem está velho? Anda chateado? Já não tem pachorra? A pergunta do senhor do lacinho fez-lhe saltar a tampa? Talvez um pouco de tudo isso.
Os Mellos «tubarões das grandes famílias»? Certamente «grandes famílias», mas «tubarões»? Saberá VJS quais as condições de trabalho e os benefícios socais no grupo CUF no passado e nos grupos Mellos no presente? Reparou VJS na excelência dos quadros que o grupo CUF tinha?
Os Mellos beneficiários «do proteccionismo industrial do salazarismo»? Não especialmente. Beneficiários eram todos os industriais e não industriais que, nessa época detestavam a concorrência, como agora a detestam, e se queixavam, como agora se queixam, do Estado quando lhes deixa vazia a mão estendida. Por isso, os Mellos não são especialmente maus. Pelo contrário, são especialmente bons – são bons no género mau, que é o género de empresários que temos.
O imperativo da protecção, a obsessão dos direitos adquiridos, o apego aos empregos para toda a vida, a aversão à concorrência e ao risco, estão longe de ser monopólio dos empresários. Estão na alma de intelectuais e de artistas mendicantes de subsídios, de políticos sedentos de sinecuras, de sindicalistas ciosos dos lugares vitalícios de defensores dos trabalhadores. Estão inscritos na matriz cultural lusitana e é por isso que, se não a mudamos, resta-nos pouco mais do que «talvez arrumadores de carros».
Não é a falta de auto-estima. Não é a depressão, que aliás não passa do pavor do fim da vida sem esforço. É a falta de ganas. É a negligência. É a falta de integridade feita paradigma social. É o colectivismo doentio. É o «eles».
É a falta de elites capazes, que não dêem graxa, em público, aos piores defeitos do «povo» e desprezem a «choldra», em privado, que não se acagacem com a «ameaça» espanhola, não sejam tributárias dos dinheiros e da chantagem duma Europa franco-alemã, nem inventem solidariedades equívocas, nem amanhãs que cantam quando o povo tomar o palácio de inverno, porque o povo não quer saber de palácios de inverno, e os palácios de inverno já foram demolidos. De elites independentes da vaca marsupial pública, capazes de procurar a excelência, de trabalhar duro e meter a mão na massa para fermentar a mudança em vez de estrumar o bolor. E, claro, de terem oportunidade de beneficiar com o seu talento.
Que fazer com estas elites, perguntareis? Boa pergunta. Reformá-las e pô-las a fazer blogues.
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