25/12/2003

DIÁRIO DE BORDO: Parábola hiperbólica do Bem Mandado.

Preparava-me para resistir heroicamente ao Natal e ao seu cortejo de rendições ao consumo e a outros valores decadentes (reflexões xaroposas sobre «a vida», «intimismo», «confessionalismos fúteis»), devidamente fortalecido com o exemplo d’A Praia, quando tomo conhecimento por email de Ivan Nunes que faltava um aqui na sua frase parcialmente citada ali. Esse aqui reduziu a esplêndida resposta metafísica e radical d’A Praia, por mim imaginada, a uma trivial auto-ironia e a um confessado baquear às rabanadas, aos presentes e às xaropadas em geral.
Perdido o exemplo, deixei-me, também eu, sucumbir alarvemente. Espreitei para dentro dos embrulhos dos presentes, mergulhei nas rabanadas, atulhei-me de farófias e filhoses.
Como sempre acontece no final das libações, as minhas raízes judaico-cristãs trouxeram, com a digestão agitada, a culpa e o remorso. Envergonhado, escondi-me num sofá, peguei distraidamente num exemplar da Única (o 327º anexo do semanário do saco de plástico), fingi que estava a ler e afundei-me numa soneca, embalado pela ensurdecedora algaraviada dos impertinentes mais pequenos.
Quando acordei pousaram-me os olhos na página aberta - a nº 36. Um nome familiar irrompeu da floresta de letras desfocadas. Procurei os óculos caídos. Lá estava: LARGO DO LEÃO. Tratava-se dum artigo sobre o pediatra Gomes Pedro que, fiquei a saber, tinha andado na escola primária do Largo do Leão, precisamente a mesma onde, uns anos depois do pediatra, aprendi quase tudo o que interessa. Aprendi a fazer contas de cabeça, a ler e, um grande e, a escrever, com esforço, mordendo a língua e molhando o lápis, mas a escrever. Com um pequeno exagero, direi até, quero dizer escreverei, que o Impertinente nasceu para as letras no Largo do Leão e que as Impertinências encontram lá as suas raízes.
Ainda mal refeito da soneca, flutuando no limbo da semiconsciência, passeei a preguiça do sofá para o escritório e lá fui dar a minha volta pela Bloguilha. Varei n’A Praia para confirmar o aqui. Lá estava. Não sou o único pecador, pensei aliviado. Deixei-me arrastar pelos ventos e atraquei no cais do Armazém de Artes e Letras do Abrupto. Procurei o presépio pendurado. Não estava. Em vez do presépio, uma natureza morta. Mergulhei por entre posts, que no dia 23 foram numerosos, até ser atraído pela BIBLIOFILIA 6 - uma referência, inevitavelmente erudita, ao ensaio de Eduardo Pitta A Fractura. A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea, onde, pelos vistos, a voz dos pederastas na literatura se apresenta como uma “ética da desobediência”.
Alguma sinapse freudiana no cérebro impertinente ligou a “ética da desobediência” ao Largo do Leão.
Foi também lá, no Largo do Leão, que me iniciei no sexo. Não na prática do mesmo, que a idade não permitia, mas na introdução à sua teoria infantil, por assim dizer.
Foi ainda lá, na Escola Primária nº não sei quantos, que, pela primeira de muitas centenas de vezes nos anos seguintes, ouvi um daqueles garotos “de pé descalço” como recordou o pediatra, mandar imperativamente uma das pequenas criaturas que povoavam a nossa aula da 2ª classe: “vai levar no cu”. Essa pequena criatura cresceu e, por uma improvável e inexplicável coincidência (feliz? Infeliz?), algures na adolescência, se não antes, começou obedientemente a cumprir o imperativo mandato. Tão bem o fez, que passou a ser conhecido por o “Bem Mandado”, em homenagem a esse episódio remoto.
Foi por isso que a alusão do Pitta, citada pelo Abrupto, à “ética da desobediência” a propósito dos pederastas, na literatura portuguesa ou em qualquer outro lugar, me pareceu, ainda mal refeito da soneca agitada pela digestão das rabanadas, completamente infundada.

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